Clique aqui e receba as notícias no WhatsApp

Whatsapp

O Ministro Zanin e o efeito Minority Report (ou Pimenta no olho alheio é refresco)

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

29/04/2025 - 09:04 - Atualizada em: 29/04/2025 - 15:47

“♫ E se eu te explicar você não vai entender/ Vai rir de mim querer me internar/ Amor perdido/ Expectativa, frustração/ A bomba tinha que explodir em alguém/ E essa é a vingança do meu desamor/ E alguém inocente não se deu bem/ Amor perdido/ Expectativa, frustração/ efeito dominó” (Efeito dominó; Ira!).

Quando, em 2002, Steven Spielberg lançou o filme Minority Report, baseado em conto de Philip K. Dick, muitos se inquietaram com a ideia de um sistema em que crimes eram punidos antes mesmo de serem cometidos. No filme, agentes da chamada “Pré-Crime” prendiam cidadãos com base em previsões de futuros delitos — sem que o ato tivesse ocorrido. Era uma crítica poderosa à erosão das garantias fundamentais e à tentação totalitária de sacrificar liberdades em nome de uma pretensa segurança absoluta.

O que parecia ficção científica há duas décadas, porém, acaba de encontrar eco (mais uma vez) na realidade brasileira. Em uma decisão que beira o surreal, o ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, determinou que advogados tivessem seus celulares lacrados durante uma sessão judicial. O motivo? A precaução contra eventuais vazamentos de vídeos da audiência, pois isso ocorreu em outra audiência.

O Precog do STF

Ou seja, por medo do que poderia vir a acontecer, o ministro se investiu de Precog (os seres que previam o futuro no referido filme) e impôs restrição a todos, indistintamente. Não se trata de punir o ato praticado, mas a sua mera possibilidade. Um triste e grave efeito Minority Report em pleno STF, a Corte que deveria ser a das garantias constitucionais.

A gravidade da decisão, a meu ver e com respeito a quem discorde, não está apenas na prática isolada. Está na lógica que ela inaugura: a da punição preventiva, da presunção de culpa coletiva, da supressão de garantias em nome da conveniência momentânea. Advogados — aqueles a quem a Constituição confere inviolabilidade no exercício da profissão — passaram a ser tratados como potenciais transgressores pelo simples fato de portarem celulares. Não houve apuração individualizada, não houve contraditório, não houve respeito à presunção de boa-fé.

Em um Estado Democrático de Direito, a responsabilização deve ser pessoal e fundamentada. O erro de um indivíduo não justifica a antecipação da culpa sobre outro. Permitir que medidas restritivas sejam impostas coletivamente, com base apenas em suposições, é abrir perigosamente a porta para arbitrariedades cada vez mais normalizadas. É inverter a lógica da Justiça: não mais a proteção do inocente, mas a vigilância e a suspeita generalizadas. Se houve atos antidemocráticos em 8 de janeiro, não se pode combatê-los, especialmente na casa máxima da Justiça brasileira, com outros atos antidemocráticos.

Tal prática é ainda mais preocupante em um contexto de transformação digital, em que a posse de dispositivos móveis é não apenas comum, mas essencial para o exercício da advocacia contemporânea. Anotações, processos, comunicações profissionais — tudo transita pelo celular. Lacrá-lo é, em muitos casos, privar o advogado de seus instrumentos de trabalho e comunicação, e, em última análise, impor prejuízo ao jurisdicionado.

Ao se optar por medidas amplas, indistintas e preventivas, substitui-se a racionalidade jurídica pelo medo difuso. E o medo, como sabemos, nunca foi bom conselheiro no campo das liberdades públicas. Punir por predição precoguiniana é o primeiro passo para normalizar a supressão de direitos fundamentais em nome de uma segurança ilusória.

A história já nos mostrou — tantas vezes, como num eterno efeito dominó — que concessões a pequenos autoritarismos se acumulam. E nos traz situação irônica: Zanin mostrou que aprendeu rápido com Moro, pois, no passado, quando era advogado criticou o então juiz por decisão similar (embora menos gravosa).

No filme de Spielberg, a falência ética do sistema “Pré-Crime” é o grande aprendizado. Na vida real, resta observar, resistir e, principalmente, recordar que Direito não é feito para proteger o poder de quem julga, mas a liberdade de quem é julgado, e isso serve tanto para o criminoso magnata quanto para o ladrão pé-de-chinelo, para a esquerda e para a direita.

 

Clique aqui e receba as notícias no WhatsApp

Whatsapp

Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.