O céu da casinha de madeira da Vila Lenzi

Por: Nelson Luiz Pereira

26/11/2022 - 05:11

Era início da década de 1980. Fazia dois anos que papai Luiz, tinha perdido a vida num acidente de trabalho. Feito retirantes, eu e o mano Arno, nos encontramos em Jaraguá. Mamãe e os filhos menores ficaram em Laurentino.

Algum tempo depois, aquele inesquecível encontro no portão da WEG I. Lá estava Santa Pereira com seu semblante ansioso. – Oi mãe, que surpresa. Chegou bem na hora do almoço. Venha, vamos almoçar conosco na pensão. – Não – disse ela. A partir de hoje, vamos almoçar em família, e o almoço já está pronto.

Ela tinha preparado refogado de abobrinha, um feijãozinho com arroz e ovos fritos. Sigilosamente, a angelical Santa havia comprado uma taperinha na Vila Lenzi, se mudado com os filhos menores e preparado aquele almoço.

Me dei conta de que aquele caminhar com lágrimas nos olhos, a partir do portão da WEG I, junto a Santa e o mano Arno, eram passos para uma nova fase da vida. Era um significativo recomeço.

Era o rearranjo de um esfacelamento que o destino impusera, com a precoce e acidental partida do papai. Mas agora a guardiã das almas estava perto, e com o lar reconstruído e disponível incondicionalmente.

Agora havia uma cama com um tijolo quente embrulhado numa toalha, debaixo da coberta, na altura dos pés, esperando meu retorno das baladas nas madrugadas frias.

Agora havia o chazinho de boldo sem que precisasse ser solicitado. A roupa preferida, sempre impecavelmente passada, além das confidências que só uma mãe compreende, e as respostas que só ela tinha.

A angélica Santa, tal qual uma alquimista, lotou aquela tapera. Além dos cinco filhos, alojou mais seis pensionistas. Cuidou de todos. Cuidou até dos vizinhos da nossa rua Goiás. Ela foi angelical, não foi desse mundo. O menor quartinho da tapera, era exclusivo da mana Jânia.

Naquele lar república, cotidianamente, a vida seguia, as almas se abraçavam e também davam até logo. Um dia a tapera anoiteceu vazia por conta das festas de final de ano. Somente eu e a Santa. Os demais haviam saído para seus programas de férias.

Depois de longa conversa a sós, decidi dormir no quartinho da Jânia. Passei a observar seu cantinho humilde, decorado de sonhos. Deitei-me, apaguei a luz. A escuridão foi vencida por um céu estrelado estampado no teto de madeira com papel fluorescente.

Fiquei contemplando por um longo tempo, aquele universo onde as estrelas, a lua e os cometas de caudas luminosas, traduziam a dimensão dos sonhos da irmã. Clamei para que o papai estivesse habitando aquele céu. Supliquei a Deus para que as vidas da Santa e irmãos, fossem guiadas por aquele céu estrelado.

Naquele momento desejei que todos os irmãos estivessem em casa. Levantei-me e fui até a cama do mano Beto. Deitei-me por alguns minutos sentindo o cheiro do irmão no travesseiro. Senti ali, a alma de um futuro grande homem. Mudei-me para cama ao lado e captei a vibração da energia e cumplicidade do mano Arno.

Eu não teria sobrevivido sem ele. Fui até a janela, contemplei uma brilhante lua. Me veio à mente o irmão Nilton, o protetor e viajante que já percorrera todas as estradas possíveis. Por onde rodaria naquele momento? Mais tarde, aquele quartinho estrelado passou a ser ocupado pelo mano Geovane.

Agora, eu observava o mundo particular e solitário daquele caçula, cujas dificuldades e inseguranças, se faziam retratadas em seu olhar de sofrimento, compartilhado pela Santa. Tinha a alma branca e mansa. Não suportava o sofrimento

de nenhum animal. Hoje eu sei que os céus de Geovane, Santa e Luiz, são muito mais estrelados e brilhantes do que aquele do teto da tapera.

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Nelson Luiz Pereira

Administrador, escritor, membro do Conselho Editorial do OCP e colunista de opinião e história.