Chupetas digitais

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

03/09/2024 - 11:09 - Atualizada em: 03/09/2024 - 14:43

“♫ Me diz por que que o céu é azul/ Explica a grande fúria do mundo/ São meus filhos que tomam conta de mim” (Pais e filhos; Legião Urbana).

Quem, aqui, sente saudades daqueles tempos em que frequentar um restaurante poderia ser desagradável por conta da gritaria e correria das crianças?

Em um mundo cada vez mais conectado, onde a tecnologia permeia todos os aspectos da vida, uma tendência tem se tornado comum nas famílias: o uso de dispositivos eletrônicos como forma rápida e eficaz de acalmar bebês e crianças pequenas. Esses aparelhos são entregues aos pequenos como verdadeiras chupetas digitais, oferecendo entretenimento imediato e acalmando crises de choro e inquietação.

Esse termo já vem sendo usado há alguns anos, mas sua prática tem se proliferado muito ultimamente. Estudo da Frontiers in Child and Adolescent Psychiatry, do Canadá, alerta que 26% das crianças de 0 a 4 anos passa mais de 4 horas diante de alguma tela diariamente!

E daí?

Mas o que esse hábito revela sobre a capacidade dos pais de lidar com os desafios naturais da infância? E quais são as consequências a longo prazo para as crianças?

Até pouco tempo, os pais recorriam a métodos tradicionais para acalmar seus filhos. Canções, colo, passeios, conversas eram as principais ferramentas utilizadas para tranquilizá-los em momentos de desconforto. Exigem mais tempo e energia, mas desempenham um papel crucial no desenvolvimento emocional e social das crianças, além de fortalecer os laços entre pais e filhos.

Com a popularização dos dispositivos eletrônicos e a crescente demanda por conveniência, muitos pais encontraram nesses aparelhos uma solução rápida para o choro e a inquietação. Um toque na tela, e pronto: desenhos animados, jogos interativos e músicas instantaneamente capturam a atenção das crianças, acalmando-as magicamente. Parece uma droga injetada na veia! Ou no cérebro!!

Estímulos e consequências

A utilização de dispositivos eletrônicos como chupetas digitais pode ter impactos profundos no desenvolvimento das crianças. Há o risco de dependência precoce desses aparelhos. Crianças que são constantemente acalmadas por meio de estímulos digitais podem se tornar incapazes de lidar com o tédio ou desconforto sem recorrer a uma tela. Isso pode levar à falta de maturidade emocional, pois elas não aprendem a lidar com suas próprias emoções e frustrações.

Além disso, conforme já falei em outro texto aqui, estudos indicam que a exposição excessiva a dispositivos eletrônicos pode contribuir para o desenvolvimento de problemas como ansiedade, déficit de atenção e dificuldades no relacionamento interpessoal. O uso constante de telas desde a primeira infância pode comprometer o desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais, que são essenciais para uma vida equilibrada e saudável. Crianças que passam muito tempo em frente a uma tela podem ter dificuldade em se concentrar, em entender as sutilezas das interações sociais e em desenvolver empatia.

Ainda há o impacto na qualidade do sono. A luz emitida por telas eletrônicas interfere na produção de melatonina, o hormônio que regula o sono. Crianças que usam dispositivos eletrônicos antes de dormir podem ter afetados seu desenvolvimento cognitivo e emocional.

Os efeitos dessa prática não se restringem apenas à infância. Há evidências de que a dependência precoce de dispositivos eletrônicos pode persistir na adolescência e na vida adulta, resultando em comportamentos compulsivos (não só com tecnologia).

Paciência

Em muitos casos, a falta de habilidade ou paciência para lidar com os desafios naturais da infância leva os pais a darem as chupetas digitais aos filhos. O tempo parece escasso, a pressão para conciliar trabalho, vida pessoal e a criação dos filhos é enorme, e as pessoas estão com dificuldades de lidar com isso tudo.

Os pais devem assumir seus papéis de pais. O colo, o carinho, as conversas e o tempo dedicado são insubstituíveis para o desenvolvimento saudável de uma criança. Esses momentos de proximidade ajudam a acalmar os pequenos, fortalecem os laços familiares e contribuem para o desenvolvimento de uma base emocional sólida.

Faças as contas: você passa mais tempo (bom, de afeto e conversas) com seu filho ou com suas redes sociais ou aplicativos de mensagens? Ou anda injetando drogas demais na mente dele?

 

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.