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Na paz do celular

Foto: divulgação

Por: Raphael Rocha Lopes

25/03/2025 - 14:03 - Atualizada em: 25/03/2025 - 15:14

♫ “There’s a lady who’s sure/ All that glitters is gold/ And she’s buying a stairway to heaven/ When she gets there, she knows/ If the stores are all closed With a word she can get what she came for”♫ (Stairway to heaven, Led Zeppelin)

Chegar em casa depois de um longo dia de trabalho, tirar os sapatos, colocar o celular para carregar ao lado do sofá — mas sem desgrudar dele, claro —, e se deixar afundar entre as almofadas como quem se entrega a um ritual sagrado. O jantar pode esperar, as conversas também. Afinal, nada é mais revigorante do que deslizar o dedo para cima e para o lado, com a leveza de quem domina o mundo.

As pessoas na paz do celular.

E o tempo evapora.

Lá fora, a vida continua. Dentro de casa, reina o silêncio dos ocupados — não os que estão lendo, estudando ou produzindo. Os que estão… rolando. Um feed, um vídeo, um story. Mais um. Só mais um. Talvez outro. Aquele meme, aquele reels com dublagem engraçada, aquele comentário ácido no post de alguém que você nem conhece. Não importa. Tudo contribui para o conforto anestésico de não precisar falar com ninguém ao redor.

Enquanto isso…

… às vezes, no mesmo cômodo, outra pessoa também repousa no sofá ou na cama, em paz semelhante. Marido e mulher, lado a lado, conectados — mas não entre si. Cada qual em sua bolha digital, compartilhando intimidade com desconhecidos e esquecendo da partilha real com quem está ali, ao alcance dos olhos e do toque. A conexão Wi-Fi está forte; já a emocional, nem tanto.

Os filhos, por sua vez, aprendem rápido. Percebem que os adultos também evitam diálogos, desviam o olhar e terceirizam a atenção para as telas. O exemplo arrasta. Crianças crescem acreditando que conversar olho no olho é desconfortável, que o afeto pode ser adiado e que respostas podem ser dadas com emojis. Os jantares, quando ainda acontecem à mesa, são pontuados por silêncios ou por “só mais um minuto”, dito com os olhos grudados na tela.

A tecnologia, que prometia aproximar as pessoas, tem afastado quem está mais perto. A casa que deveria ser o espaço do encontro virou um ponto de dispersão. Cada um em sua ilha, com seu dispositivo, vivendo um mundo paralelo — editado, filtrado e bem mais interessante do que a realidade. Pelo menos é o que parece.

O custo

Mas essa paz digital cobra um preço. O diálogo conjugal empobrece, o carinho torna-se protocolar, a escuta vira exceção. Perde-se o tempo da troca, das pequenas conversas que sustentam os vínculos. E o amor, que precisa de presença para existir, vai se tornando um dado estatístico nas separações silenciosas.

Com os filhos, o impacto é ainda mais delicado. Crianças e adolescentes precisam da atenção dos pais como referência de segurança, afeto e orientação. Quando não encontram isso, preenchem o vazio com influenciadores, youtubers, fóruns e algoritmos que não têm compromisso com formação nem com valores. Ao contrário, esses algoritmos (leia-se plataformas de redes sociais) vivem do sensacionalismo, do escândalo, dos traumas.

A ausência parental, hoje, não se dá apenas pelo excesso de trabalho — ela também mora na distração constante do celular.

Claro que a tecnologia não é a vilã. O problema é quando ela deixa de ser ferramenta e vira refúgio. Quando o conforto imediato das redes sociais se sobrepõe ao esforço — e ao prazer — de manter relações reais. Não estou pregando a abolição do celular da vida doméstica, mas talvez seja hora de refletir: quanto tempo você tem dedicado às pessoas que estão de corpo presente ao seu lado? Quanto da sua paz no celular é, na verdade, fuga do mundo real?

Talvez, a verdadeira paz não esteja na rolagem infinita, mas na escuta atenta. No abraço oferecido sem pressa. No diálogo que não cabe em 140 caracteres. E, sobretudo, na coragem de se desconectar um pouco do mundo para se reconectar com quem importa de verdade.

 

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.