♫ “Tempo amigo, seja legal/ Conto contigo pela madrugada/ Só me derrube no final”♫ (Sobre o tempo; Pato Fu)
Era uma vez um tempo em que o tempo existia. Um tempo em que as pessoas liam livros com calma, saboreando cada página, refletindo sobre as histórias e os personagens. Ao final do livro ou mesmo de um capítulo, era comum fechá-lo e, por alguns instantes, fitar o nada. Não era improdutivo; era um momento de reflexão com as palavras ecoando na mente e se transformando em aprendizado.
Uma sentada
Eu sou do tempo em que “sentada” era uma unidade de medida do tempo. “Li o livro numa sentada”, dizia-se para expressar o prazer de se perder nas páginas por horas, sem interrupções. Hoje, entretanto, essa expressão parece um resquício do passado, ou pior, está associada a coisas mais tenebrosas e menos culturais.
Hoje, as leituras, quando acontecem, são rápidas, rasas, superficiais, interrompidas por notificações incessantes. Lê-se tudo, mas absorve-se quase nada. E, com isso, perde-se a profundidade e a viagem intelectual que a leitura deveria proporcionar.
Essa mudança na percepção do tempo não se limita aos livros. Há não muito tempo, esperar por um novo episódio de uma série era um ritual. Havia a expectativa, o suspense e a paciência de acompanhar a história aos poucos, digerindo cada capítulo semanalmente. Hoje, em contrapartida, as maratonas dominaram o consumo de entretenimento. Assiste-se a temporadas inteiras em um único final de semana, consumindo tudo de uma vez, sem espaço para refletir ou absorver os detalhes. O resultado? Histórias que mal são lembradas semanas depois.
Essa transformação no modo de lidar com o tempo está profundamente ligada à tecnologia. A promessa era que os avanços digitais trariam mais tempo livre, tornando as vidas mais práticas, eficientes e prazerosas. Em alguns aspectos, isso se concretizou: tarefas que antes levavam horas agora são resolvidas em minutos. Contudo, paradoxalmente, parece que nunca houve tão pouco tempo. Isso acontece porque, em vez de se usar a tecnologia para criar pausas, ela enche as pessoas de mais estímulos, conteúdos e demandas.
A falta que o tempo faz
O tempo livre, antes reservado aos momentos de ócio criativo, agora é preenchido por telas, zumbizando e apodrecendo o cérebro. O espaço para reflexões, conversas e leituras foi tomado por notificações, redes sociais, emojis e vídeos curtos.
Esse comportamento afeta diretamente a cultura e a educação. A falta de leitura não é apenas consequência do ritmo acelerado; é também causa do empobrecimento do pensamento crítico e da capacidade de interpretar o mundo. Sem reflexão profunda sobre o que consomem — seja um livro, uma série ou uma notícia —, as pessoas estão se tornando cada vez mais receptores passivos, incapazes de questionar ou conectar ideias, e sendo alvos fáceis de mentiras repetidas como verdades pelas redes sociais e aplicativos de mensagens.
O impacto disso é coletivo. Uma sociedade que não reflete ou discute com profundidade toma decisões e realiza debates superficiais e cada vez mais pobres. A polarização, a intolerância ao contraditório e a incapacidade de dialogar são reflexos de uma sociedade que valoriza a velocidade em detrimento da qualidade.
O tempo que parece não existir mais pode ser recuperado. Para isso, é preciso desacelerar, permitir-se contemplar, refletir e dar espaço ao silêncio. O que faz a vida plena não é a quantidade de coisas que se faz, mas a profundidade com que se aproveita. Que se volte a medir o tempo por “sentadas” de leitura e momentos de conexão genuína com aquilo que enriquece as vidas e as mentes.