“Meu primeiro beijo infantojuvenil nunca terminou”

Por: Nelson Luiz Pereira

27/08/2022 - 11:08 - Atualizada em: 27/08/2022 - 11:35

Era década de 1970. A realidade se fazia dura. Para ser sincero, se fazia de ferro. Os generais Médici, Geisel e Figueiredo comandavam a ditadura. Os americanos perdiam a vexatória guerra para o Vietnã. O mundo da música perdia Elvis Presley e, como se não bastasse, The Beatles encerravam a banda. Mas aquela década também proporcionou belas fugas, como os estonteantes dribles da dupla Pelé e Garrincha; o Tri mundial; as performances revolucionárias do icônico e lendário Jimi Hendrix; as emblemáticas atuações de Marlon Brando.

Em síntese, particularmente ficou para mim como a década dos confrontos. A repressão contra a liberdade, o proibido contra o desejado, o preconceito contra a tolerância, o doutrinamento contra a ousadia. Foi em meio a esse cenário que experimentei o primeiro e atrevido beijo infantojuvenil. A imagem sisuda do general Emílio Garrastazu Médici, se fazia emoldurada em todas as salas da escola EEB Expedicionário Mário Nardelli. Aquele retrato era a mais representativa antítese de um beijo precoce.

Um novo ano letivo se iniciava. As carteiras, de duplo assento, eram dispostas em quatro fileiras. Glorinha sentava-se solitária em sua carteira, próxima a minha. Subitamente pensei: e se um outro moleque afoito resolve sentar-se com ela? Como abordá-la e conquistar a permissão daquele lugar vazio ao lado dela? Me faltava coragem. Inesperadamente, o mala do Jano, cabeça avantajada, bochechas rosadas, bem penteado, calçando conga e traje alinhado, sentou-se ao lado dela sem pedir permissão. Me senti um pateta.

Soa, então, o sinal do recreio. Ao sair da sala Glorinha é atropelada por dois moleques que brincavam de pega-pega no corredor. Ela cai, bate a cabeça e fica desacordada. Eu não perderia a segunda oportunidade. Tomei-a nos braços, em meio a aturdida gurizada, e levei-a na sala da secretaria. Ela recebeu os primeiros cuidados da diretora, a qual me ordenou que ficasse ali, segurando o pano úmido na testa da vítima, enquanto ligaria para os pais de outra sala. Nesse intervalo de tempo Glorinha recobrou a consciência.

O que aconteceu? – perguntou-me atônita. Você foi atropelada por dois moleques, e eu lhe trouxe em meus braços até aqui – respondi. Obrigado por ter cuidado de mim. Você merece um beijo – sugeriu ela. Imediatamente inclinei-me e ofereci o lado do rosto. Ela ergueu levemente a cabeça do travesseiro, e no exato momento eu reverti a posição do rosto e a surpreendi com um relâmpago beijo na boca. Nunca esqueci aquele semblante ‘espanto encantado.’ Foi minha primeira subversão ao regime da obediência cega. Meu primeiro e real sentimento de liberdade.