“Meu inesquecível kit Pátria”

Por: Nelson Luiz Pereira

01/09/2018 - 06:09 - Atualizada em: 31/08/2018 - 15:31

Nos aproximamos do dia da Pátria. Tenho em minha memória escolar, aqueles anos 1964-1985 em que o regime militar impunha o civismo na educação. O momento solene à bandeira, com ginásticas e declamações de poesias cívicas, era curricular e com ritual semanal.

Desta época, guardo lembranças cômicas e melancólicas. Das cômicas, destaco uma: era de praxe a diretora designar semanalmente uma classe, cujo voluntário declamaria uma poesia no momento cívico. De posse daquele inseparável bastão, desprovida de sorriso, ela entrava na sala e decretava: preciso de alguém que declame uma poesia.

Certa feita, ao pronunciar a ordem, seu olhar castrador me atingiu em cheio. Perdi a ‘continência’ de meus esfíncteres. Para meu alívio, Tito, garoto forte, bochechas rosadas, cabeça avantajada e desbastada, lá no fundo da sala, se apresentou. Chegado o momento, todos no pátio, em posição de sentido, Tito é anunciado.

Eu sentia inveja da coragem de Tito se dirigindo para frente daqueles pelotões mirins, sob o olhar severo das ‘generalas’, contrastando com meu olhar de ‘guri defecado’. Tito respirou fundo, dirigiu o olhar fixo para o Pavilhão Nacional, e com voz retumbante declamou: “jacaré foi no mercado, não sabia o que comprar; comprou uma cadeira para a vovó se sentar; a vovó se sentou, a cadeira se quebrou; jacaré chorou, chorou, do dinheiro que gastou”.

Engolir aquela gargalhada é a tortura que carrego do regime.

Lembro-me nitidamente do exclusivo ‘kit pátria’ de uso anual, que mamãe zelosamente mantinha no guarda-roupas. O oval estojo, com bagas de naftalina, armazenava uma camisa branca engomada, que acompanhava uma gravatinha borboleta de cor preta; uma calça curta azul marinho, com impecáveis frisos feitos com ferro à brasa, harmonizando com um suspensório marrom.

O cívico figurino se completava com meias brancas na altura das canelas e a suntuosa conga azul de solado branco.

Agora, a lembrança melancólica. Papai encarregava-se do corte do cabelo. Eu odiava aquele momento. Nunca esqueci o toco de lenha no terreiro e aquela medonha máquina manual de Auschwitz mal regulada.

Ficava imaginando o olhar burlesco da namoradinha no day after. Passei a detestar o dia da Pátria por dois motivos:

  • i) o modelo do corte era sempre ‘coco pelado’;
  • ii) o cabelo era praticamente arrancado de minha cabeça. Mamãe caprichava com a minha estética; papai esculhambava com meu semblante.

Embora amasse os dois, eu via na mamãe o ‘sentido’ da pátria e no papai o ‘dia’ da pátria. Com o passar do tempo fui me dando conta dessa dicotomia. Eu amava a ‘Pátria’, mas não via sentido no ‘dia da Pátria’.

Atualmente, para a maioria dos brasileiros, esse valor se inverteu. O sentido repousa agora no ‘dia da pátria’, por tratar-se de um feriado. A ‘Pátria’, em si, já não faz tanto sentido. Certamente por haver confusão entre Brasil e maus brasileiros, além de se ignorar que Pátria é perene e governo é transitório.