Foi quando a luz da alma se apagou

Por: Nelson Luiz Pereira

30/10/2022 - 12:10 - Atualizada em: 30/10/2022 - 12:22

As férias da escola mal haviam começado e aquele angustiante medo sobre uma eventualidade de não mais ver Glorinha, se tornou realidade. Era véspera de Natal. A família estava reunida para o jantar. Esperávamos a polenta ser virada na tábua ao centro da mesa, acompanhada de uma vasilha de leite de vaca fervido.

Enquanto nos servíamos, mamãe anunciou aquilo que para mim soou como uma sentença de morte da alma. Eu viajaria sozinho, aos 14 anos, para uma terra distante, São Joaquim. Trabalharia e continuaria a escola. Meu coração disparou. Embora eu não imaginasse, aquilo significava uma boca a menos em casa.

Resisti dirigindo um olhar suplicante ao papai, mas ele não retribui aquele olhar. Significava que a ordem estava determinada e seria cumprida sem apelação. Passei aquela torturante noite em claro.

Pela primeira vez senti vontade de fugir de casa no meio da noite. Amanheceu o Natal mais melancólico de minha vida. Eu partiria no dia 2 de janeiro, no final da tarde. Tudo ficaria para trás. Meu mundo desmoronou, tal qual um castelo de areia.

O medo do desconhecido se tornou um suplício. Lembro-me com lucidez do fatídico dia da viagem. A primeira coisa que pus naquela maleta de madeira com dois fechos de metal, foi meu caderno escolar, onde constava anotado o endereço da amada. Ao menos aquilo me manteria vivo. Me relacionaria via “interpaper” (cartas), já que internet era só ficção.

O momento do embarque, acompanhado pelos pais e irmãos foi de prantos. Minutos depois, o ronco do motor, a partida do ônibus e o último aceno, me transformaram num “degredado filho de Eva”.

As árvores de verão passavam velozes pela janela trepidante e empoeirada daquele velho ônibus, e suas ramagens iam varrendo blocos de nuvens brancas de um céu azul daquela solitária tarde. Viajei naquela contemplação até adormecer. O ônibus seguia coletando passageiros por estradas tortuosas e esburacadas.

Ao anoitecer, agora eram os postes de luz de cidadelas com pouca vida, que passavam pela janela trepidante. Completada a lotação, o cobrador, percorreu os acentos recolhendo as passagens de uns, cobrando de outros.

Era um senhor de semblante reservado, denso bigode, aparentando uns 50 anos, formalmente trajado com calça preta, camisa branca com gravata azul e um boné de policial marrom. Encerrado seu trabalho, recolheu-se em seu banco dianteiro, apagou as luzes e a noturna viagem seguiu implacável e ininterrupta.

Eu não sentia medo do escuro, mas queria as luzes acesas. Foi quando me vi perdido na distância. O quintal, a escola, a família e Glorinha, já haviam se tornado saudade cruciante antes mesmo que eu chegasse ao desconhecido destino.

Amanheceu, o motor desligou, acordei angustiado, desembarquei e sacudi a poeira. Me senti pisando no velho oeste. Nunca tinha visto tanto pistoleiro a cavalo pelas ruas. Lá estava eu, um forasteiro de alma encomendada.