Todos os dias, pelo menos 32 brasileiros tiram suas próprias vidas e estima-se que em todo o mundo ocorra um suicídio a cada 40 segundos. Os dados são do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que também aponta que, apesar dos números estarem diminuindo ao redor do planeta, os países das Américas vão na contramão dessa tendência, com índices que não param de aumentar.
Ainda de acordo com a OMS, quase 100% dos suicídios estavam relacionados às doenças mentais, principalmente não diagnosticadas ou tratadas de forma incorreta. Ou seja, a maioria dos casos poderia ter sido evitada se esses pacientes tivessem acesso a informações de qualidade e tratamento psiquiátrico.
Para conscientizar as pessoas sobre o tema, em 2015 iniciou no Brasil a campanha Setembro Amarelo, que já existia nos Estados Unidos desde 1994. A data de 10 de setembro marca o Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio e é dedicada ao debate sobre a saúde mental e à valorização da vida, promovendo o diálogo, o apoio emocional e a busca por ajuda profissional.
A reportagem do OCP conversou sobre o assunto com o médico Dedi Alves Ferreira Neto, clínico-geral e pós-graduando em Psiquiatria, que atende pacientes com quadros psiquiátricos graves no Hospital Jaraguá e no Hospital Santo Antônio, em Guaramirim, além de já ter atuado no Centro de Atenção Psicossocial (Caps), em Schroeder. Leia a seguir:
OCP – O que diferencia uma tristeza comum de um quadro que merece atenção clínica urgente?
É normal as pessoas confundirem tristeza com depressão, porém, o transtorno depressivo ou outros transtornos que possam ter tristeza são quadros mais amplos e complexos que carregam mais sintomas associados. Por exemplo: uma pessoa deprimida pode estar triste cronicamente, porém com outros sintomas também, como redução de energia ou disposição, alteração de sono, alteração de peso, redução de prazer nas coisas, dificuldade para executar coisas que antes fazia rotineiramente, entre outros (não necessariamente todos esses sintomas juntos). Isso acontece porque transtornos depressivos geram uma lentificação do funcionamento do cérebro em algumas áreas. Inclusive, o paciente que está em um transtorno depressivo não precisa, exclusivamente, estar triste, muitas vezes no lugar da tristeza há vazio ou aumento de irritabilidade.
Então, uma forma de conseguirmos diferenciar a tristeza de um quadro patológico está na frequência e intensidade dessa tristeza, e se ela acompanha outros sintomas. Se é um quadro que persiste mais de 15 dias, começou mexer nas funções desta pessoa e não há algo no contexto que justifique isso, como um luto, por exemplo, é importante uma avaliação médica ou psicológica. Minha orientação é: se está atrapalhando a pessoa por um tempo persistente ou está com sofrimento intenso ou gera prejuízo na vida pessoal, vale uma avaliação, afinal é melhor haver uma avaliação e ser constatado que não há nenhum transtorno se instalando do que o paciente esperar e sofrer por mais tempo.

No início deste mês, o Dr. Dedi Alves Ferreira Neto esteve na Câmara de Vereadores, onde defendeu a implantação urgente de uma terceira unidade do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no município | Foto: CVJS
OCP – Quais são os principais fatores de risco para o suicídio?
Aqui vou trazer alguns cenários que podem aumentar a chance de quadros graves e de risco, mas vale ressaltar que é algo bem complexo e amplo e existe mais além do que irei citar:
-pessoas em situações de vulnerabilidade psicossocial atuais ou que já viveram no passado de maneira intensa. Alguns exemplos são: negligência familiar, assédios em seus vários formatos, como abuso sexual, situação econômica desfavorável, não ter condições mínimas de dignidade de vida, violência física e psicológica, entre outras;
-não ter uma rede de apoio que seja acolhedora para contar, seja família ou amigos. Isso pode fazer com que a pessoa, que já se sente culpada, tente resolver o problema sozinha (e quando não há a melhora do quadro pode começar a duvidar se irá melhorar em algum momento, aumentando o perigo de um pensamento suicida estruturado. Ter com quem se abrir ajuda na procura precoce de tratamento e redução de quadros graves;
-situações de contexto cultural ou social que geram a crença de que a pessoa não pode demonstrar fragilidade, pois veem esta atitude como algo negativo. Isso leva a pessoa a não pedir ajuda, contribuindo para a progressão do quadro até se tornar grave. Dito isto, é muito comum pessoas do sexo masculino não se abrirem devido a questões de contexto cultural e, em contrapartida, também aumenta a incidência de quadros depressivos em mulheres, por acúmulo de exaustão e, em alguns casos, por questão de contexto cultural;
-pacientes que já tentaram o suicídio ou quadros graves previamente;
-histórico familiar de suicídio que, em alguns casos, pode aumentar a chance do paciente evoluir para quadros mais graves;
-dinâmica familiar muito disfuncional pode, em casos pediátricos, ser um fator de risco para casos graves e de suicídio também.
OCP – Existem sinais comportamentais ou emocionais que amigos e familiares podem perceber como alerta?
Sim, porém é importante entender que existem pessoas que se sentem tão culpadas que tendem a não se abrir e externamente parecem estar bem. Alguns sinais são mudanças de comportamentos padrões da pessoa que persistem por mais de 15 dias, como estar mais introspectiva, mais isolada, sem disposição, chorosa, exausta cronicamente e com alteração de sono. Isso pode indicar um transtorno depressivo em curso. Agora, paciente que já está em um quadro grave que melhora o humor repentinamente, sem tratamento ou causa, pode, em alguns casos, ser um sinal de alarme, pois pode acontecer uma breve melhora no humor quando o paciente já planejou o suicídio. Afinal, como já relatado por algumas pessoas, há a sensação de que o sofrimento irá acabar. Então, se você suspeitar que um familiar ou amigo está sofrendo mentalmente, separe um momento e converse com ele, escute-o, deixando o canal de comunicação aberto com acolhimento e, em casos que houver percepção de situações mais graves, o estimule ou leve para uma avaliação psiquiátrica.
OCP – Como abordar uma pessoa que está demonstrando sinais de sofrimento psíquico?
Sempre com acolhimento. Existe uma grande chance de nem essa pessoa saber o que está acontecendo com ela internamente, então, qualquer coisa que gere julgamento ou cobrança geralmente atrapalha. Em casos que há psicose ou pensamento que não está lógico, tentar convencer a pessoa que ela não está lúcida geralmente não funciona e tende piorar. O ideal é “entrar no jogo” até que a ajuda chegue até o paciente, nesse caso o Samu ou Corpo de Bombeiros.
OCP – Qual o impacto de fatores como desemprego, pobreza, violência ou isolamento social na saúde mental e nos casos de suicídio?
Há o impacto direto do aumento de incidência de se ter o adoecimento mental e do aumento da chance de piora de casos graves. Pacientes que adoecem mentalmente perdem a capacidade de serem eles mesmos e carregam culpa e a sensação, muitas vezes, de estarem “quebrados”. Os impactos socioeconômicos podem piorar esse quadro ou gerá-lo, visto que sofrimento emocional crônico pode adoecer mentalmente.
OCP – Ainda existe muito tabu em torno do suicídio. Como isso afeta o tratamento e a prevenção?
Com certeza, a fala da própria palavra suicídio em uma conversa gera um certo constrangimento, como se fosse um assunto proibido, como já relatado por alguns pacientes. O tabu em relação a doenças que afetam o cérebro, como as psiquiátricas, reduz muito a busca por ajuda por aumentar a negação da doença ou por aumentar a sensação do paciente de se sentir inferior, fora isso, o não entendimento de como essas patologias funcionam pela população geral faz com que esse tema seja negligenciado e estereotipado, gerando em alguns a ideia de que transtorno psiquiátrico é coisa de “louco”, o que é algo pejorativo e mentiroso, afinal, existe diversas doenças mentais que não tem o teor genético tão presente, fazendo com que qualquer um em determinado momento possa adoecer psicologicamente.
OCP – Quais estratégias de prevenção ao suicídio são mais eficazes, tanto em nível individual quanto coletivo?
Estimular a qualidade de vida da pessoa. Dito isso, existem nuances extremamente individuais, afinal, qualidade de vida é você ter acesso a condições mínimas de vida e saúde, porém, é também você viver uma vida que faz sentindo para você, sendo esta individual. Por exemplo, estudar algum tema, ter mais tempo livre para ficar em casa, ter algum lazer específico, seja viajar, acampar, praticar esportes, entre outros, são coisas que não são padronizadas, pois o que faz sentindo de rotina e lazer parar mim pode não fazer para você. Aliado a isso, viver uma vida que faça sentindo para você é algo profundo e filosófico, por isso o acesso a serviços de psicologia e educação e campanhas de psicoeducação podem auxiliar.
Fora isso, coletivamente é necessário haver condições e serviços que oferecem à população a oportunidade de viver essa vida de qualidade. Como serviços com um tratamento adequado, alimentação adequada, estruturas e acesso a esporte, estruturas de lazer, de locomoção. Afinal, o ser humano é um ser sociável e estimular uma vida social de qualidade aumenta a saúde mental coletivamente. Entretanto, é extremamente importante ressaltar novamente a necessidade de haver serviços de saúde mental, pois mesmo em países com índice de desenvolvimento humano (IDH) alto, como Islândia e Nova Zelândia, possuem taxas de suicídios significativas.
OCP – Quando alguém deve procurar um psiquiatra ou psicólogo?
Sempre que achar que está tendo algum sofrimento mental ou que não está pensando ou se comportando no seu habitual, ou quando tem dificuldades para mudar comportamentos, lidar com seus pensamentos, sintomas de doenças mentais ou executar o que pensa. Entretanto, acredito que a procura, principalmente psicológica, pode ser feita sem uma doença ativa, como por exemplo, na dificuldade para lidar com situações ou emoções, pois um acompanhamento psicológico previne o adoecimento de saúde mental.
OCP – Que mensagem o senhor gostaria de deixar para as pessoas que estão passando por sofrimento emocional ou que perderam alguém por suicídio?
Procure ajuda. Seja do jeito que conseguir, se abrindo com alguém que confia ou marcando uma consulta. O importante é ter um início até você conseguir ter o acolhimento e tratamento mais adequado. Hoje, nós temos muita pesquisa e muitas formas de lhe ajudar, você não está sozinho, não é sua culpa e é possível, por mais difícil que pareça, sair desse lugar. Procure ajuda que vida pode ser mais leve.