Na sessão desta terça-feira (2), a saúde mental dominou a pauta da Câmara de Jaraguá do Sul. Atendendo a requerimento dos vereadores Charles Salvador (PSDB) e Osmair Gadotti (MDB), o médico clínico geral com atuação em psiquiatria do Hospital Jaraguá, Dr. Dedi Alves Ferreira Neto, usou a tribuna para descrever a situação do acolhimento a pessoas em sofrimento psíquico no município e defender, com dados e exemplos, a implantação urgente de um Centro de Atenção Psicossocial tipo III (Caps III). Segundo ele, a realidade atual — marcada por superlotação, carência de leitos e fluxo assistencial fragmentado — já não dá conta do aumento da demanda e coloca pacientes e famílias em espera prolongada e em condições inadequadas.
“Hoje eu atendo quando é necessário no Hospital Jaraguá. Não somos um hospital de referência psiquiátrica, mas, devido ao aumento de demanda, esses pacientes ficam lá”, contextualizou. O médico, que já trabalhou em Caps e também atua em projeto semelhante no Hospital Santo Antônio, em Guaramirim, afirmou que a discussão não é exclusiva de Jaraguá do Sul. “O problema de saúde mental é global. A Organização Mundial da Saúde projeta que, nas próximas duas décadas, uma em cada duas pessoas terá algum transtorno psiquiátrico ao longo da vida”, disse, ressaltando o impacto econômico e social do transtorno depressivo e de outras condições mentais graves e persistentes.
Dados locais e gargalos do atendimento
Dedi apresentou números da rotina hospitalar regional. “De internação psiquiátrica, que fica aguardando vaga via sistema de regulação do Ministério da Saúde (Sisreg) em Jaraguá do Sul dá, em média, de 25 a 30 [pacientes] por mês, contando os dois hospitais. Se incluir Guaramirim, chegamos a 30 a 40 apenas nesses dois municípios”, relatou. Conforme o médico, de 70% a 80% dessas pessoas chegam após tentativa de suicídio ou com ideação suicida grave, necessitando de vigilância contínua. A espera por vaga psiquiátrica dura, tipicamente, de sete a quinze dias — período em que o paciente permanece no pronto-socorro, muitas vezes numa cadeira ou usando um leito que seria destinado a casos clínicos gerais. “Não tem leito. A verdade é essa”, resumiu.
Para além da falta de vagas, o desenho de rede é outro entrave. Na visão do médico, a atenção primária está sobrecarregada e tende a acolher casos leves; os CAPS existentes, por sua vez, já operam no limite e, por isso, concentram os quadros mais graves. “O paciente moderado, que precisa de internação breve ou cuidado intensivo por alguns dias, fica no ‘buraco’ do sistema”, afirmou.
Por que um Caps III
Ao detalhar a proposta, Dedi destacou que o Caps III funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, com leitos para internações de curta duração e uma rotina terapêutica humanizada de oficinas e acompanhamento multiprofissional. “O paciente, durante o dia, passa pelas oficinas; é uma coisa humanizada. E ele tem leitos e permite internações de curta duração justamente para esses pacientes”, explicou. A implantação, frisou, tem respaldo normativo e financiamento federal, mas esbarra, com frequência, na capacidade de custeio de municípios menores. Por isso, sugeriu que Jaraguá do Sul lidere um arranjo em consórcio regional — por exemplo, via Amvali — para sustentar a equipe necessária, que é o item mais caro do modelo. “O caro não é a construção, é a equipe. Casos graves não se atendem em 15 minutos. Eu preciso observar, conversar, acompanhar. Sem uma equipe com folga, vira um serviço sucateado”.
Segundo o médico, a região da Amvali somaria cerca de 360 mil habitantes, o que ampliaria a viabilidade financeira e assistencial. A centralização logística em uma mesma estrutura física, com equipes e portas de entrada separadas por município, permitiria padronizar fluxos (por exemplo, pós-desintoxicação de tentativas de suicídio por intoxicação exógena) e reduzir o “empurra-empurra” entre serviços. “Com o tempo, um Caps III gera dados epidemiológicos locais — quem adoece, onde, por quê — e isso orienta prevenção e uso mais inteligente dos recursos”, acrescentou, lamentando a ausência de informações básicas hoje, como a prevalência de depressão grave que já esgotou o arsenal terapêutico do SUS no município.
Vereadores cobram respostas e ação imediata
A fala do médico encontrou ressonância imediata entre os parlamentares. O vereador Almeida (MDB) lembrou que, em 17 de junho, a Câmara aprovou moção de apelo ao Executivo municipal pedindo a implantação do Caps III, considerando que Jaraguá do Sul já superou 180 mil habitantes. Para ele, a proposta se impõe também pela superlotação do Hospital São José. “Jaraguá do Sul está apta a cadastrar o projeto no Governo Federal e captar recurso. O problema nós conhecemos, a solução que ameniza já está desenhada. O que falta é vontade política”, afirmou. Almeida ressaltou que o sofrimento atinge pacientes e familiares, que se deparam com longas esperas em corredores e com o estigma social. “Parabéns pela sua participação, doutor. Esperamos resultados.”
A vereadora Professora Natália Lúcia Petry (MDB) compartilhou um caso familiar que, no mesmo dia, percorreu pronto-socorro, Hospital São José e aguardava transferência para Blumenau por falta de atendimento psiquiátrico em Jaraguá — tanto pelo SUS quanto por plano de saúde. “É muito triste. Quando uma perna está quebrada, todos entendem o problema. Já a saúde mental ainda não é compreendida. Sem rede de acolhimento no município, tudo fica mais difícil”, disse. Segundo ela, o diretor do Hospital São José, Maurício, confirmou as dificuldades estruturais e regulatórias para abrir uma ala psiquiátrica hospitalar e relatou a média de cinco pacientes em espera por leito SUS, chegando a permanecer até dez dias no pronto atendimento. “A implementação de um CAPS III para acolhimento pode ser a saída. O Legislativo fará o que estiver ao alcance, mas a etapa é do Executivo”, concluiu.
Em seu retorno à tribuna, Dedi reiterou que, em 2025, “há ciência suficiente para que esses pacientes vivam sem sofrimento”, desde que haja cuidado estruturado e psicoeducação. “Se já não conseguimos fazer o básico do atendimento, imagine ter tempo e equipe para educação em saúde. O Caps III é mais humano porque não é dentro do hospital, trabalha a vulnerabilidade emocional e permite protocolos de fluxo para evitar que um serviço jogue para o outro. A demanda é absurda e tende a piorar”, alertou.
Autor do requerimento, Osmair Gadotti (MDB) agradeceu o médico e defendeu o consórcio regional como caminho “mais viável” para a solução. Segundo o vereador, Jaraguá do Sul hoje já absorve pacientes de toda a região por ser referência hospitalar, de modo que a divisão de responsabilidades precisa ser formalizada e financiada de forma proporcional. “Não dá para deixar tudo na porta do São José ou do Hospital Jaraguá. Se todos participarem, dentro de um percentual populacional, a conta fecha. O Hospital de Massaranduba poderia, inclusive, ser referência, com um Caps III aproveitando aquele espaço”, sugeriu.
Dedi pontuou que, pelo porte populacional, Jaraguá do Sul “já precisa de uma unidade” própria, passível de apoio federal para construção e custeio. Para evitar sobrecargas cruzadas, recomendou mais de uma unidade sob a mesma logística regional, com portas e equipes separadas, garantindo seguimento e integração dos dados. “Assim você centraliza um pouco, mas melhora o segmento, evita a sobrecarga entre cidades e consegue volume para pesquisa, usando melhor os recursos no médio e longo prazos.”
O vereador Jair Pedri (PSD) fez um depoimento contundente sobre a invisibilidade do sofrimento mental e a necessidade de decisões orçamentárias concretas. “Esse debate só torna claro o quanto somos impotentes. A saúde mental não recebe o devido valor. Pessoas ficam uma semana ocupando espaço no hospital, sedadas, e voltam para casa sem tratamento contínuo. Na semana seguinte, retornam. Eu queria datas, prazos, valores. Que aprovássemos aqui, como hoje aprovamos quase um milhão para o São José, alguns milhões para a saúde mental. Muitas vezes, parece que a saúde mental não dá ‘lucro político’”, lamentou. Pedri pediu “respostas efetivas” e questionou objetivamente o que falta: vontade política, decisão executiva ou recurso financeiro. “As pessoas estão doentes e invisíveis. O tratamento não existe. Precisamos parar de chover no molhado”.
No desfecho do debate, Almeida voltou a falar e propôs, caso persista a inação do Executivo, o uso de instrumentos regimentais do próprio Legislativo para “ser ouvido”. Ele lembrou as limitações constitucionais de iniciativa de leis que onerem o Executivo, mas sustentou que a Câmara pode, se necessário, obstruir pautas enviadas pelo governo municipal para chamar atenção à urgência. “Estamos aqui não para carimbar projetos, mas para fazer diferença. Se o diálogo, as moções e as falas não sensibilizam, podemos adotar medidas mais duras — um remédio amargo — para que a política pública saia do papel”, disse.
Entenda: o que é um Caps III
O Caps III é um serviço de saúde mental aberto, comunitário e territorial, que funciona 24 horas por dia e dispõe de leitos para internações de curta permanência, evitando internações psiquiátricas prolongadas e hospitalizações desnecessárias. A assistência é multiprofissional (médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermagem, serviço social, entre outros) e inclui atendimento individual, em grupo, oficinas terapêuticas, acompanhamento familiar, visitas domiciliares e articulação com a rede de atenção básica, urgência e assistência social. Na avaliação apresentada pelo Dr. Dedi, esse desenho permitiria a Jaraguá do Sul acolher, com mais humanização e segurança, o perfil de doentes que hoje lota os prontos-socorros enquanto aguarda vaga hospitalar, além de permitir a construção de um banco de dados local que qualifique a prevenção e o planejamento de longo prazo.
Próximos passos
Ao final, vereadores de diferentes bancadas convergiram na necessidade de encaminhar o tema ao Executivo com prioridade máxima — seja para a elaboração de um projeto técnico de implantação do Caps III, seja para a abertura de diálogo com a Amvali e com o Ministério da Saúde visando financiamento e consórcio regional. Com os relatos apresentados pelo Hospital São José e pelo médico convidado, a Câmara indicou que seguirá cobrando prazos e soluções, além de considerar medidas regimentais para acelerar decisões. “É urgente. A demanda é crescente e a tendência, se nada mudar, é piorar”, resumiu Dedi.
Enquanto a definição administrativa não vem, permanece o cenário descrito no plenário: pacientes e famílias em sofrimento, equipes exauridas, corredores improvisados e um risco real de agravamento social — das tentativas de suicídio à cronicidade do abandono. Para a maioria dos vereadores, a implantação do Caps III não é apenas uma opção de gestão, mas um gesto de civilidade e responsabilidade com a vida de milhares de pessoas que, todos os dias, batem à porta do poder público em busca do acolhimento que o município, hoje, ainda não consegue oferecer.