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Seletividade alimentar no autismo: característica afeta mais de 50% de crianças e adolescentes no Brasil

Foto: Freepik

Por: Priscila Horvat

14/04/2025 - 13:04 - Atualizada em: 14/04/2025 - 13:46

Já imaginou ter um filho que não come nada sólido e se alimenta somente por líquidos? Essa é a realidade da dona de casa Bruna de Vargas Cherque, mãe do Bento, de três anos e sete meses. Diagnosticado com autismo, ele parou de comer logo após completar dois anos, literalmente da noite para o dia.

“O Bento comia normalmente. Ele fez dois anos no dia 6 de setembro de 2023, no dia 14 ele jantou e, a partir do outro dia, não comeu mais nada sólido. No início eu imaginei que ele tivesse engolido alguma coisa porque um fone de ouvido da minha mãe havia sumido e a gente não encontrava. Depois de cinco dias ele apresentou muita febre. Levei ao hospital, fizeram o raio x e não tinha nada. Ele comia de tudo e agora não come mais nada sólido, ele não mastiga. Hoje ele se alimenta apenas de líquidos: leite, suco natural e vitaminas”, relata a mãe.

Ainda de acordo com a dona de casa, ela adota estratégias para garantir uma alimentação que supra as necessidades nutricionais do filho.

“O Bento é extremamente saudável, quando fica gripado se recupera em dois ou três dias. Me preocupo muito com a saúde dele, por isso sempre faço sucos e vitaminas com alimentos bem nutritivos. Por exemplo, cozinho carne moída sem gordura e sem nenhum tempero, acrescento legumes e macarrão. Deixo tudo muito bem cozido, bato no liquidificador, fraciono em vários potinhos e congelo. Depois pego as porções e bato junto com frutas, leite em pó, castanhas, linhaça e faço vitaminas dessa forma. Tudo precisa ser bem coado, lisinho, não pode ter nenhuma textura. Tudo precisa ser líquido, adoçado e gelado, senão ele não aceita”, explica Bruna.

O caso do Bento pode parecer inusitado, mas a seletividade alimentar é uma das características mais comuns entre as pessoas que estão dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Uma pesquisa publicada na Revista da Associação Brasileira de Nutrição revelou que 53,4% das crianças e adolescentes com TEA apresentavam seletividade alimentar, influenciada por fatores sensoriais como odor (56,4%), textura (53,9%), aparência (53,8%) e temperatura dos alimentos (51,3%).

A pediatra Bruna de Paula, especialista em alimentação infantil e idealizadora do Método Comer, que é um programa de acompanhamento nutricional para a dificuldade alimentar, explica que a seletividade no autismo vai além de uma simples frescura ou birra.

“Crianças autistas costumam apresentar hipersensibilidade ou hipossensibilidade sensorial, o que significa que texturas, sabores, cheiros e até a temperatura dos alimentos podem causar grande desconforto. Isso faz com que elas rejeitem determinados grupos alimentares e prefiram sempre os mesmos tipos de comida”, esclarece a médica.

Nos casos em que as crianças comem e, de repente, param de comer, a especialista explica que “na maioria das vezes, a criança está com a boca machucada, ou está com afta, algum incômodo que a família não identifica e força a criança a comer, com isso, ela desenvolve uma resistência aos alimentos e passa a se alimentar somente com os líquidos. Pode haver exceções, mas em 95% dos casos é por algum mal estar na boca. E como os autistas sofrem mais com a rigidez de comportamento, isso pode desencadear uma seletividade ainda mais intensa”, ressalta Bruna de Paula.

Principais dúvidas sobre seletividade alimentar no autismo

Para entender o porquê da seletividade alimentar ser tão comum em pessoas autistas e como ajudar quem sofre com o problema, a pediatra, responde a sete importantes perguntas:

1 – Por que a seletividade alimentar é um sintoma tão comum entre os autistas?

A seletividade alimentar é resultado de uma combinação de fatores sensoriais, motores, emocionais e comportamentais. Dificuldades sensoriais com texturas, cheiros, sabores e temperaturas são comuns. Crianças hipersensíveis evitam estímulos intensos, enquanto hipossensíveis preferem sabores e texturas marcantes. Problemas motores orais, como dificuldade para mastigar e engolir, também contribuem, levando à preferência por alimentos mais fáceis de consumir. Experiências negativas, como engasgos ou desconforto digestivo, podem criar aversão a certos alimentos. Além disso, a rigidez com rotinas alimentares, comum em crianças com autismo, e a pouca exposição a alimentos variados nos primeiros anos de vida dificultam a aceitação de novos sabores.

2 – Como diferenciar a seletividade alimentar de uma recusa alimentar comum em crianças?

A seletividade é mais persistente, envolve uma rejeição ampla e duradoura de diversos grupos alimentares e costuma estar associada a outras causas além do comportamento alimentar esperado para cada faixa etária. Crianças seletivas apresentam uma dieta muito restrita, reações intensas diante de certos alimentos, como choro, ânsia ou rituais alimentares, e essa condição pode se estender por anos. Já a recusa alimentar comum é mais leve e temporária, típica de crianças pequenas que estão explorando sua autonomia. Nessas situações, a criança tende a aceitar alimentos com o tempo e não costuma apresentar prejuízos nutricionais. Quando a recusa é frequente, causa estresse na família, prejudica o crescimento ou o bem-estar da criança.

3 – Quais as consequências nutricionais que a seletividade alimentar pode causar?

Uma dieta muito restrita dificulta a ingestão adequada de nutrientes essenciais para o crescimento, desenvolvimento e saúde geral. É comum haver deficiências de vitaminas e minerais como ferro, cálcio, vitamina D, vitamina A e C, além de ácidos graxos essenciais, o que pode causar anemia, problemas ósseos, baixa imunidade e atrasos cognitivos. Também pode haver impacto no crescimento, com baixo peso e estatura para a idade, e problemas digestivos como constipação. No longo prazo, a seletividade pode afetar o comportamento alimentar, levando a medos e rigidez com a comida, além de gerar consequências sociais e emocionais, como ansiedade e isolamento em situações que envolvem alimentação.

4 – Quais são as melhores estratégias para ajudar uma criança autista a ampliar sua aceitação alimentar?

Ajudar uma criança autista a aceitar uma maior variedade de alimentos requer paciência e estratégias individuais. É fundamental introduzir os alimentos gradualmente, apresentando-os repetidamente e em pequenas quantidades, sem forçar a criança. Um ambiente calmo, com rotina e utensílios familiares, contribui para o conforto dela, enquanto adaptações na textura e sabores, que considerem suas sensibilidades, podem tornar a experiência mais agradável. Envolver a criança na escolha e preparo dos alimentos também estimula o interesse pela comida, e o uso de reforços positivos ajuda a consolidar novos hábitos. Além disso, o apoio e a orientação de profissionais especializados, como terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e nutricionistas, são essenciais para desenvolver uma abordagem eficaz e respeitosa, possibilitando progressos que, embora lentos, fazem uma diferença significativa na ampliação da aceitação alimentar sem gerar estresse ou resistência.

5 – Como cada profissional citado pode auxiliar no processo de diversificação alimentar?

O pediatra monitora o crescimento e identifica deficiências, enquanto o nutricionista elabora um plano alimentar adaptado às necessidades e preferências da criança. O terapeuta ocupacional auxilia no trabalho sensorial e o fonoaudiólogo melhora as habilidades de mastigação e deglutição. Questões emocionais e comportamentais são abordadas por psicólogos ou psiquiatras infantis, e terapeutas comportamentais incentivam a experimentação de novos alimentos com estratégias de reforço positivo. Em casos específicos, fisioterapeutas e educadores de inclusão também podem ser importantes, ajudando no desenvolvimento motor e na promoção de atividades lúdicas que facilitam a aceitação alimentar.

6 – Há algum erro comum que os pais cometem ao tentar lidar com a seletividade alimentar?

Sim, há diversos erros comuns que os pais podem cometer, os quais podem intensificar a resistência da criança. Forçar a alimentação e usar a comida como recompensa criam associações negativas com os alimentos, assim como a falta de persistência na introdução de novos sabores pode reforçar a seletividade. Outro equívoco é não proporcionar um ambiente tranquilo durante as refeições, o que pode aumentar o estresse e a rejeição. Além disso, substituir alimentos saudáveis por opções mais processadas e comparar a criança com outras também agrava o problema, assim como ser muito rígido nas regras alimentares, ignorando as dificuldades sensoriais que a criança pode enfrentar. Por fim, focar apenas no que não é comido e não buscar auxílio profissional impedem que o processo de diversificação seja efetivo.

7 – A criança seletiva também será um adulto seletivo?

A seletividade alimentar não é algo exclusivo da infância, muitos adultos mantêm uma alimentação extremamente restrita, recusando diversos alimentos por causa da textura, do cheiro, do sabor ou de experiências negativas com a comida. E, sim, na maioria dos casos, esse adulto seletivo já foi uma criança seletiva. Quando a recusa alimentar infantil é enfrentada com brigas, chantagens ou excesso de pressão, a criança cresce associando a alimentação a sentimentos ruins como medo, tensão e culpa. Esse padrão, quando não é tratado, se mantém ao longo da vida. Mas essa relação negativa com a comida pode mudar também na fase adulta, principalmente com o foco no comportamento. A seletividade tem solução em qualquer fase da vida.

Mês da Conscientização sobre o Autismo

Abril é conhecido como o mês da conscientização sobre o autismo, também chamado de Abril Azul. A data de 2 de abril foi escolhida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Mundial de Conscientização do Autismo.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do desenvolvimento neurológico que afeta a comunicação, a interação social e o comportamento. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, no mundo, existam 70 milhões de pessoas com o TEA, 2 milhões só no Brasil, segundo dados de 2010.

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Priscila Horvat

Jornalista especializada em conteúdo de saúde e puericultura.