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Na linha de frente da guerra: catarinense relata sua experiência após lutar na Ucrânia

Rafael é o segundo da esq. para a direita | Fotos: Arquivo pessoal

Por: Elisângela Pezzutti

07/08/2025 - 10:08 - Atualizada em: 07/08/2025 - 10:16

A guerra entre a Rússia e a Ucrânia começou oficialmente em 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu o território ucraniano. No entanto, o conflito tem raízes mais profundas e começou a se intensificar anos antes, com a disputa geopolítica, aproximação da Ucrânia com o Ocidente e anexação da Crimeia pela Rússia em 2014.

Através da Legião Internacional de Defesa da Ucrânia, o exército do país passou a aceitar estrangeiros como voluntários para lutar contra a invasão russa. Essa legião foi criada ainda em 2022 e conta com combatentes de diversas nacionalidades, incluindo brasileiros, colombianos, mexicanos e outros.

O planejador financeiro Rafael Guimarães, de 29 anos, jaraguaense que atualmente reside em Guaramirim, é um dos brasileiros que foram lutar ao lado do exército ucraniano. Ele permaneceu em combate no período entre junho de 2024 e fevereiro de 2025. Agora, em entrevista exclusiva para o OCP, Rafael conta como foi viver essa experiência. Confira!


Rafael, como surgiu a sua disposição de enfrentar os perigos de uma guerra em outro país?
Eu vi nas redes sociais o que os russos faziam para os civis. Então decidi ir e só mais tarde descobri que teria remuneração. Mas eu posso afirmar que não fui pelo dinheiro, pois sempre vivi muito bem no Brasil e não precisava de dinheiro. Eu sempre tive o desejo de entrar em lugares como Síria, no auge da guerra civil, Sudão ou Yemen, pelo desejo de ajudar com o que eu pudesse.

Em termos práticos, como você conseguiu concretizar o objetivo de ir para a Ucrânia?
Me organizei durante 6 meses e fui só com a passagem de ida. Na fronteira entre Polônia e Ucrânia fui recebido com todo auxílio necessário. Basicamente, saí de casa com a benção e auxílio da minha esposa. Sendo sincero, eu só voltei para casa inteiro porque minha esposa me ajudou à distância e durante as missões ela foi minha motivação para voltar vivo. Mas, hoje, o processo de recrutamento é totalmente diferente de quando eu me apresentei.

Como e onde foi feito esse recrutamento?
Na fronteira com a Ucrânia, na cidade de Medyka, na Polônia, eles me receberam e iniciaram as primeiras fases do recrutamento.

A passagem de ida foi você mesmo que custeou?
Sim, na ida foi tudo custeado por mim, porém, quando entrei na Ucrânia eles passara a fornecer tudo que fosse necessário.

Quanto custou a passagem e quais conexões precisou fazer até chegar ao país?
Custou cerca de R$ 4 mil e minhas conexões foram Lisboa, Milão, Varsóvia e Cracóvia. Depois disso um ônibus me levou de Cracóvia para Medyka, na fronteira.

E como você se comunicava com os ucranianos?
Em inglês. A maioria dos ucranianos é poliglota.

Você não sentiu medo de ir para lá?
Não, a viagem foi bem tranquila. Eu senti medo somente na minha primeira missão, por conta da artilharia. Eu nunca tinha ouvido os sons ou sentido aquilo, foi atormentador nos primeiros dias.

Quanto tempo você permaneceu na Ucrânia e em que período?
Eu fiquei de junho de 2024 a fevereiro de 2025. Peguei todo o combate de outono e inverno. Era muito frio, fazia -10º C. Natal e Ano Novo eu passei em missão. Até hoje, quando está frio, sinto dor nas articulações dos dedos.
No Natal de 2024 eu estava em missão na região de Kharkiv, na fronteira com a Rússia. Lembro de que um irmão brasileiro, do Espírito Santo, também de nome Rafael, estava em um bunker localizado 700 metros atrás da nossa equipe. Ele me mandou um feliz natal no rádio em meio a um ataque de morteiros de 82mm. Aquilo me marcou muito, pois estava muito frio, estávamos há 6 dias na posição e não tínhamos mais comida e água. Lembro que chorei de alegria e agradeci a ele.

O frio intenso foi outra dificuldade enfrentada por Rafael


Como fazia para se comunicar com a sua família? Seus pais concordaram com a sua decisão de ir para lá?

Eu me comunicava pelo celular, mas nunca em missão, pois não tinha sinal de celular e somente algumas unidades possuíam a Starlink. Meus pais me apoiaram e eu não teria saído do conforto da minha casa sem a benção deles.

Conta mais sobre como eram os dias em meio à guerra…
Foram uma mistura de alegria, por ter tido o privilégio de conhecer tanta gente brava e heroica, bons brasileiros que fizeram o inimaginável para o bem do próximo, mas também de muito sofrimento, lágrimas e sangue, por ter perdido bons amigos e irmãos.

Quantos brasileiros estavam lá com você?
Tem uma estimativa de pelo menos 300 brasileiros lá, divididos em centenas de brigadas ou batalhões. Na minha unidade de forças especiais de assalto éramos em 5.

Como ficavam alojados, o que comiam?
Nas primeiras 3 semanas ficamos sob responsabilidade do 4º batalhão da Legião Internacional Ucraniana, que era um batalhão de treinamento financiado pelo Ocidente. Nesse lugar, ficamos em alojamentos de recrutas, havia camas em corredores com padrões lineares e bem organizados. Lá, os meninos eram separados dos homens e fomos treinados diretamente por comandos de forças especiais britânicas, americanas e francesas, entre outras. Após a formação, éramos designados para os nossos respectivos batalhões de acordo com nossas especialidades e desempenho. Quanto à alimentação, nós comíamos rações de combate nas missões, que eram fornecidas pela Polônia, Alemanha, Inglaterra etc., mas também comíamos comidas típicas ucranianas, tais como borscht, varenyky, olivier salad, kovbasa, entre outros, pois a culinária ucraniana é bem variada. Eu também comi muito kebab e pizza de restaurantes de pessoas originárias do Azerbaijão, Geórgia e Turquia.

Nas missões, os soldados se alimentavam com rações de combate que eram fornecidas pela Polônia, Alemanha, Inglaterra e outros países

Esses meninos aos quais você se refere tinham que idade?
Eu não sei exatamente a idade deles, mas os combatentes tinham idades entre 18 a 40 anos.

Você viu pessoas morrendo na sua frente? Chegou a pegar em armas?
Sim, infelizmente eu vi, sim. Também peguei em armas. Todos dominam os armamentos com louvor, independente da especialidade. As minhas especialidades eram assalto, reconhecimento e parte médica de combate.

Esses são termos técnicos pouco conhecidos. Pode explicar melhor?
O assalto é responsável por entrar no terreno inimigo, recuperar esse terreno e captar informações de inteligência. O reconhecimento é responsável por entrar nas proximidades do terreno inimigo, captar movimentações de suprimentos, de drones e atividades de artilharia, para tentar ver quais unidades inimigas estão na região e captar a comunicação deles via rádio. O médico tem a responsabilidade com os feridos no momento do assalto, e usa métodos de cuidado, atuando na evacuação dos feridos e trazendo-os de volta à segurança.

O que é feito com os corpos dos combatentes que morrem? E os feridos, como são atendidos?
Os corpos – caso seja possível levá-los para casa – são sepultado com honras. Os feridos nós tratávamos em um lugar seguro na linha de frente. Quando possível, eles eram levados até uma zona chamada de zona amarela, onde recebiam atendimento de médicos formados, ucranianos e estrangeiros.

Sobre a questão do dinheiro, eram pagos somente os estrangeiros ou todos que estavam lutando? Qual era o valor pago?
Todos os que lutam, independente da função, são remunerados. Os pagamentos podem várias de 20 mil grívnias (480 dólares) até 190 mil grívnias (4.500 dólares). Isso depende da função e da periculosidade. Eu escolhi estar na linha de frente, logo meu salário era maior. Muitos optavam por doar seus salários para instituições e isso dependia muito do propósito de cada combatente. Um detalhe interessante é que ganhávamos um salário igual aos ucranianos, éramos tratados como ucranianos, a documentação, etc. As pessoas acham que somos mercenários, mas a realidade é que somos incorporados dentro do exército ucraniano e assim recebemos todos os benefícios de um cidadão ucraniano.

Quais foram os momentos mais difíceis nesses meses em que passou lá?
A morte de alguns irmãos e o fato de não conseguir socorrê-los por conta de ataque de artilharia muito forte. Um deles me chamou no rádio por 2 dias. É algo que lamento até hoje.

Ele pediu socorro, mas acabou morrendo?

Isso mesmo. Ele foi salvar um companheiro, pisou em uma mina e perdeu a perna. Pelo rádio ele me chamou para ajudá-lo, mas eu não conseguia achá-lo no meio do caos. E chegou a um ponto em que não pudemos avançar, por conta da artilharia pesada e os drones, que estavam nos atacando com tudo. Foi um inferno. E gostaria de pontuar que agi na tentativa de resgatar civis. Os russos bombardeavam muito as cidades longe da linha de frente, e era uma tristeza ver os civis sendo mortos pelos drones.

E esse cão que aparece na foto… por que ele estava ali?
Geralmente quando as cidades são bombardeadas os civis são evacuados e infelizmente os pets ficam. Nós conseguimos trazer para a cidade segura alguns pets. Esse cão da foto é uma fêmea. Estava prenha e ferida por estilhaços. Nosso médico búlgaro tratou dela no meio do front, realizou uma sutura e a trouxe para segurança em meio a artilharia e explosões. Ele foi um herói naquela missão, salvando pelo menos quatro soldados feridos em ação.

Outro lado triste da guerra: quando as cidades são bombardeadas os civis são evacuados e os pets ficam para trás.

Após esses sete meses na Ucrânia, o que fez você voltar para o Brasil?
Eu voltei com o fim do meu contrato. Vim para cá de férias, tive a liberação do meu comando para descansar e voltar ao Brasil para rever minha família. Eu queria retornar à Ucrânia e meu comando me chamou novamente, mas minha esposa precisava mais de mim, então fiquei e pedi dispensa.

Que lições você tira dessa experiência?
Minha maior lição nesse conflito foi viver o amor na prática. Em João 15:13 está escrito que “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos”. Eu só voltei inteiro para casa porque alguém se sacrificou por mim, me amou mesmo eu sendo um completo desconhecido. A verdade é que quando se luta ou vive uma guerra, você nunca mais é a mesma pessoa, sua visão muda e sua sensibilidade mudam.

Faria tudo de novo?
Sim, sem olhar para trás eu faria tudo de novo. Salvar uma vida não tem preço, ajudar o caído e ser ajudado é maravilhoso… chorar, sorrir e abraçar seu companheiro em meio ao caos me ensinou muita coisa. Eu não apoio a guerra e não romantizo ela, pois eu sei que lá os jovens que não se conhecem se matam por velhos que se conhecem. Eu rezo a Deus que aquilo que vi não venha para o nosso mundo livre, mas se um dia vier eu defenderei e tirarei do meio do caos o máximo de vidas que eu puder, mesmo que custe a minha própria vida.

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Elisângela Pezzutti

Graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atua na área jornalística há mais de 25 anos, com experiência em reportagem, assessoria de imprensa e edição de textos.