“Nem toda história começa no nascimento. A minha começou quando eu tinha 1 ano e 8 meses, e a vida — ou talvez Deus — decidiu que eu teria uma nova chance”. Assim inicia o relato da jornalista jaraguaense Isabel Debatin, de 32 anos, sobre sua adoção pelo casal Rudolfo e Márcia da Cunha, também residentes em Jaraguá do Sul, e que já eram pais biológicos de Marco Antônio (Toni) e Adriano Roberto (Beto) e pais adotivos de Tatiane.
“Eu e minha irmã fomos adotadas com seis anos de diferença: ela em 1987, eu em 1994. Ela é a terceira, e eu, a filha mais nova entre quatro irmãos. Nossos pais sempre falaram sobre o assunto de forma muito amorosa e com naturalidade. Por isso, nunca senti vergonha de dizer que sou adotada. Sempre adorei contar essa história”, diz Isabel.
Memórias do inconsciente
A jornalista comenta que quem é adotado carrega marcas. “Eu fui adotada um pouco maior, com quase dois anos, e nessa idade, mesmo que a memória consciente não guarde imagens, o corpo e a mente registram o que foi vivido. Antes de ser adotada, passei por momentos de vulnerabilidade que moldaram quem sou. Ao longo dos anos, entendi que muitos comportamentos nossos são tentativas de suprir ausências antigas”, reflete Isabel, afirmando que a adoção, para ela, nunca foi uma muleta para justificar dores, mas uma parte indissociável de sua história. “Hoje, com maturidade, entendo que é possível honrar a história que me antecedeu sem deixar que ela me defina. Eu sou filha do coração — e essa é uma das belezas da minha vida”.
Quando a adoção era simples — e quando deixou de ser
Isabel conta que em suas conversas com a mãe, Márcia, sobre sua adoção e a adoção da irmã, Tati, ela pode ver como o tempo e as leis moldaram o processo no Brasil. “Quando ela e meu pai adotaram minha irmã, o procedimento era simples: um nome no caderninho da irmã Ivone (freira que trabalhava num hospital da cidade), uma ligação poucos meses depois e, com um termo assinado diante do juiz, minha irmã já carregava o nosso sobrenome. Mas, quando chegou a minha vez, tudo mudou”, relata.
A mãe adotiva, Márcia, contou a Isabel que, ao buscá-la, o juiz deu um termo de responsabilidade como família substituta e que a mãe biológica dela tinha prazo de dois anos para tentar mudar de vida. Durante esse tempo, a pequena Isabel não podia receber o nome da família adotiva e também não havia garantia de que o casal poderia ficar com ela para sempre. O Conselho Tutelar vigiava, a assistente social passava na frente da casa. Só depois que a mãe biológica perdeu o pátrio-poder é que Rudolfo e Márcia conseguiram adotá-la de verdade. “Minha mãe disse: ‘foi difícil, mas Deus nos deu você para sempre'”.

Márcia com as filhas Tatiane e Isabel | Foto: Arquivo pessoal
“Agora você tem outra irmã, a Bel…”
Márcia soube que havia uma menina de 1 ano e 8 meses para adoção e saiu correndo para buscá-la, sem avisar ninguém. “O meu irmão Toni, na época com 18 anos, tinha saído com os amigos, e voltou de madrugada. Quando ele chegou, a minha mãe estava na porta de casa, pensando, e ele perguntou o que tinha acontecido para ela estar acordada àquela hora. Minha mãe respondeu: ‘estou preocupada com a tua irmã’. Ele então perguntou: ‘mas o que aconteceu com a Tati?’ E ela respondeu: ‘não, não é a Tati, agora você tem outra irmã, a Bel. Meu irmão perguntou ‘como assim?’ e ela falou, vem cá ver!'”.
Isabel recorda que seus irmãos, além de seus pais, sempre foram muito afetuosos. “Eu nunca senti que eles não nos acolheram por serem filhos biológicos e nós duas sermos filhas adotivas, nunca teve um tratamento diferente”, afirma. “Tenho certeza absoluta de que nessa vida eu tinha que ser irmã deles, tinha que estar nessa família, tanto eu quanto a minha irmã, porque a gente sempre teve um relacionamento muito bom. Meus irmãos mais velhos são padrinhos dos meus filhos, Gustavo e Antônio. Tenho recordações muito boas deles e as histórias que a gente conta são sempre assim, num tom engraçado. Todos esses momentos para mim são muito marcantes”.
Mais rigor no processo de adoção
A jornalista observa que, entre a adoção da sua irmã e a dela, o Brasil passou a reconhecer com mais rigor os direitos da criança e do adolescente, especialmente com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. Em 2009, a Lei Nacional da Adoção tornou o processo ainda mais criterioso. Isabel conta que sua mãe reconhece a necessidade dessas mudanças, mas também lamenta que, em meio a tantos requisitos, muitos lares amorosos desistam. “Hoje parece tudo muito complicado, ao meu ver”, diz Márcia. “Tem casal que escolhe criança como se fosse catálogo: querem bebê, saudável, olho claro. E as crianças vão ficando. Eu só queria duas filhas para amar”.
“Infelizmente, muitas crianças crescem em abrigos, esperando uma família que nunca chega”, diz Isabel, apontando dados que refletem essa dura realidade: 34.641 crianças acolhidas no Brasil; 5.186 disponíveis para adoção; 5.940 em processo de adoção; 1.389 em busca ativa (casos mais difíceis); e 33.520 pretendentes ativos. Em Santa Catarina, a situação não é diferente: 272 crianças disponíveis para adoção, sendo 71 delas maiores de 16 anos e 57 com idades entre 14 e 16 anos.
Há histórias de perdas, doenças, irmãos para adotar junto, enquanto a maioria dos pretendentes ainda sonha com bebês recém-nascidos. Hoje, o processo de adoção, embora burocrático, visa proteger de devoluções, abusos e descuidos. “Existem casos de crianças que, após serem retiradas de famílias biológicas por abuso, sofreram novamente abuso na família que deveria protegê-las. Imagina o que se passa na cabeça de uma criança que já foi ferida uma vez — e é ferida de novo. Imagina o luto de ser separada dos irmãos, de ser devolvida, como se fosse possível devolver um amor que mal teve tempo de nascer. Muitas crianças passam por mais de uma dor antes de encontrar um lar de verdade”, lamenta a jornalista.
“Esse abismo entre o desejo e a realidade precisa ser enfrentado com políticas públicas, campanhas de sensibilização e, acima de tudo, com uma mudança no olhar sobre o que é, de fato, construir uma família”, defende.
Uma causa e uma data para refletir
No Brasil, o 25 de maio é o Dia Nacional da Adoção. “Uma data para repensarmos nossos conceitos sobre família, infância e pertencimento. Nem toda família nasce do sangue. Algumas nascem da escolha e da coragem de amar sem garantias. Da decisão de cuidar, de construir uma história a partir de encontros que a vida desenha. Toda criança merece um começo digno, um meio acolhedor e uma chance real de final feliz”, finaliza Isabel.