O OCP continua nesta quinta-feira (22), a série de reportagens especiais que resgatam os 10 anos da enchente de 2008. Para ler a parte 1 clique aqui.
A tragédia de dez anos atrás trouxe grande impacto para todos em Jaraguá do Sul, inclusive para os profissionais da imprensa que cobriram os estragos e acabaram afetados profissionalmente e pessoalmente pelo horror que se desenrolava em novembro de 2008.
Quatro dos jornalistas que cobriram os eventos fatídicos daquele ano – e seu dia mais grave, 24 de novembro, quando um deslizamento na Feliciano Bortolini causou a morte de nove pessoas da mesma família – oferecem aqui seus depoimentos.
Foram dias de trabalho intenso e pesar igualmente intenso, marcados pela incerteza e proximidade com todas aquelas perdas.
São eles Patricia Moraes, chefe de jornalismo da Rede OCP News, na época editora chefe do jornal, Piero Ragazzi, fotógrafo, cujas fotos da tragédia marcaram publicações mundo afora, Daiane Zanghelini, na época repórter de O Correio do Povo, e Rogério Tallini, hoje atuando na comunicação da Prefeitura, na época trabalhando na Rádio Jaraguá.
Confira os relatos dos jornalistas que cobriram a tragédia:
“Os piores dias que já vivi em Jaraguá do Sul” – Rogério Tallini
A imprensa teve um papel fundamental para informar, orientar e tranquilizar a comunidade.
Montamos uma rede que serviu para informar, orientar e até mesmo tranquilizar as pessoas, já que algumas localidades estavam sem contato via telefone e ficavam sabendo pelo rádio como estavam parentes e amigos residentes em outros pontos do município. Muitos, sem energia elétrica, ouviam nos rádios a pilha ou mesmo dos veículos.
A tragédia da Feliciano Bortolini chegou perto, pois eu residia há menos de 200 metros do local. Fomos surpreendidos naquela madrugada com o deslizamento da encosta que destruiu casas e estabelecimentos comerciais, matando nove pessoas.
Minha família teve que ficar fora de casa durante todo aquele dia e a noite seguinte e, ao mesmo tempo, eu tinha que trabalhar na cobertura.
A tragédia do dia 24 começou por volta das 4 horas da manhã. Meu irmão bateu na porta da minha casa, numa madrugada sem chuva. Fiquei assustado e corri atender. Nem imaginava o que havia acontecido.
Ele estava indo para o trabalho e era caminho passar pela Rua Feliciano Bortolini. Me disse que a rua estava trancada e não passava nada dali pra frente.
De todas as imagens que vi naquele momento, não me sai da cabeça a cena de um familiar das vítimas que morreram soterradas. Ele ficou horas sentado à beira da calçada, escorado num poste, de cabeça baixa, totalmente desolado.
As horas que se seguiram foram de muita angústia, até que o último corpo fosse resgatado, por volta das 22 horas. Quando eu ia até a copa ou no banheiro da rádio, chorava escondido.
Assim como neste momento em que estou recordando dos piores dias já vivi aqui em Jaraguá do Sul.
“Nem sempre é possível se distanciar dos fatos” – Patricia Moraes
O ano de 2008 deixou marcas e muitas lições. Eu passei intensamente por isso. Tanto pessoalmente como profissionalmente vivi aqueles dias de tragédia com muita angústia e inquietação.
Deitava na cama sem conseguir dormir e sem saber como seria a madrugada para centenas, milhares de jaraguaenses. Orava por todos e pedia proteção ao meu filho, então com pouco mais de um ano.
Foram dias de muita chuva até que a cidade e outros municípios da região começaram a alagar e os morros literalmente desabavam. Ninguém conseguia prever como tudo ia terminar.
A redação trabalhava em regime de plantão constante. Todo mundo se desdobrava para informar a comunidade, tentar ajudar a prevenir outros desastres e a cobrar do poder público soluções a curto, médio e longo prazo.
Vidas foram perdidas e isso foi o mais difícil. A primeira morte foi de um bebê em Guaramirim, o Raul. Depois dele, vieram outras perdas. Em Jaraguá do Sul, foram 13 mortes. Uma mãe morreu soterrada e abraçada com as filhas na Vila Lenzi.
Era fim de semana, trabalhamos para fazer a cobertura online, que na época começava a crescer, e também fizemos uma edição especial do impresso.
A tristeza e o abatimento eram gerais. Dizia a mim mesmo: chega de sofrimento, queria acreditar que nada mais podia acontecer. Mas não, na madrugada de domingo para segunda-feira, no dia 24 de novembro, o pior aconteceu.
Não lembro exatamente, mas devia ser umas 4h30 da manhã quando o fotógrafo Cesar Junckes apareceu na minha casa buzinando desesperado. Abri assustada e recordo até hoje daquelas palavras: ‘deu tragédia. Não consigo falar com nenhum repórter. O morro da Feliciano Bortolini desabou’.
Vesti o que encontrei e fui com ele ver o que tinha acontecido. A cena não tem como sair da cabeça de ninguém.
O cenário era de guerra. Bombeiros e voluntários trabalhavam tentando encontrar alguém com vida. Infelizmente, nove pessoas da mesma família foram soterradas, apenas um adolescente sobreviveu. Ao voltar para redação, chorei, choramos todos.
No meio da dor, do luto e das perdas, a comunidade deu provas de uma solidariedade e de uma capacidade de superação. E isso virou notícia nacional. Eram toneladas de doações, trabalho voluntário, palavras de carinho e compreensão.
Como jornalista, aprendi que nem sempre é possível se distanciar dos fatos, somos humanos e a nossa capacidade de empatia nos ajuda a fazer um trabalho melhor.
E, penso que, se naquela época era difícil prever algo de tamanha magnitude, hoje já temos consciência do que pode ocorrer se a natureza for desrespeitada, se o poder público for irresponsável e se a sociedade não for atuante.
Precisamos todos minimizar os riscos de uma cidade que geograficamente é mais sujeita a este tipo de tragédia.
“Um dos momentos mais difíceis da minha carreira” – Daiane Zanghelini
Cobrir essa enchente arrasadora foi, sem dúvida, um dos momentos mais difíceis e de maior aprendizado da minha carreira. A primeira grande tragédia que ocorreu naquele período foi quando caiu a casa na Tifa Martins com a mãe e as duas filhas dentro.
Se eu não me engano, isso aconteceu numa sexta à noite e no sábado fui no velório durante meu plantão, onde encontrei o pai. Lembro pouco desse dia porque ele nem estava em condições de falar, então acabei conversando com parentes, que relataram que o Branco tinha pulado a janela pra puxar a família para fora, mas não deu tempo: a casa veio abaixo bem nessa hora.
Na segunda-feira pela manhã, acordo com outra notícia péssima. Duas residências haviam desmoronado na Barra do Rio Cerro, matando nove pessoas da mesma família e deixando apenas um sobrevivente.
Recebi a ligação da Patrícia Moraes (editora-chefe) perguntando se o fotógrafo poderia passar na minha casa para irmos direto ao local da tragédia.
Foram horas de muito nervosismo e angústia. Era a primeira vez que lidava tão de perto com a morte de tantas pessoas. Lembro que fechei a matéria depois das 21h e comecei a ter noção de tudo o que tinha acontecido só depois que cheguei em casa.
Enquanto fazia a cobertura no local, a minha maior preocupação foi obter todas as informações de forma mais completa possível, conversando com vizinhos, com a Prefeitura que colaborava com a imprensa na atualização dos fatos e, infelizmente, com a funerária, para saber detalhes do sepultamento.
Mas, depois que esse momento passou, é que a ficha caiu: nove pessoas da mesma família estavam mortas! Para mim, a cobertura da grande enchente continuou por meses e até por anos.
Afinal, era preciso cobrar da Prefeitura as obras de prevenção e contenção que tinham sido prometidas, revisitar os locais atingidos e conversar com os sobreviventes.
Uma das coisas que me deixou feliz foi perceber que, apesar dos traumas que jamais serão superados, tanto o Branco (pai das meninas e marido da Silvana) quanto o Renan (do desmoronamento na Barra) continuaram suas vidas, trabalhando, cuidando das pessoas que amam e realizando projetos de vida.
E, apesar da dor, eles sempre foram muito gentis e solícitos todas as vezes que os procurei para falar sobre o assunto. Verdadeiros exemplos de superação, humildade e resiliência.
A cobertura da enchente de 2008 foi um momento difícil da rotina de repórter. Mas, ao relembrar de tudo, sinto orgulho porque meu trabalho ajudou a levar informação para locais onde o jornal impresso era, em alguns casos, a única forma de muitas pessoas saberem o que estava acontecendo.
Hoje, é muito fácil se informar pela internet, mas, há 10 anos ainda não era assim. E, ao mesmo tempo, ajudei a contar um período que certamente ficará marcado na história de Jaraguá do Sul.
“As pautas mais impactantes da minha vida” – Piero Ragazzi
As chuvas de 2008, para mim, foram as pautas mais impactantes da minha vida. Tanto pessoal quanto profissional. Foram dias muito complicados, bem difíceis. Eu mesmo, como todos que trabalhavam no O Correio do Povo, fui muito pouco para casa.
Devido, obviamente ao número de acontecimentos para cobrir e também porque as ruas estavam todas alagadas. Chegar em casa era quase impossível. Não tínhamos muito tempo para descanso. Teve dias que até banho era só um sonho distante! Acabávamos descansando, quando possível, na redação mesmo.
Infelizmente, vi muita tragédia, muita cena triste. São imagens que não vou esquecer nunca. Se eu fechar o olho, lembro claramente da dor que os parentes ao saberem que tinham perdido seus entes queridos.
Profissionalmente, foi a primeira matéria que consegui emplacar nacionalmente e internacionalmente. Eu tenho parceria com a Mafalda Press (Florianópolis), e eles estavam vendendo todo material que chegava. Eu mandava em lote, material bruto mesmo, pois a demanda estava enorme.
Aí consegui emplacar na Folha de SP, Estadão, Veja, Metro, e diversos jornais e sites pelo Brasil. Internacionalmente as agências Reuters, EFE, Associated Press, distribuíram para veículos nos Estados Unidos, Europa, Ásia e África. Foi gratificante ver o trabalho ter esse alcance, mas infelizmente foi por uma notícia triste.
Pessoalmente, a pauta me transformou. Eu estava, há dois anos no OCP, meu primeiro emprego na imprensa. Já tinha feito algumas matérias pesadas, mas nada que tivesse chegado perto disso.
Você tem que ter um preparo físico e emocional para conseguir, ou pelo menos tentar, separar as emoções, não absorver essa carga emocional e levar para dentro da tua casa. Mas, nesse caso especial, foi impossível não se envolver.
Todos da imprensa que trabalharam naquela cobertura estavam completamente envolvidos em querer ajudar. Era nítido.
Entre todos os acontecimentos, o que mais me tocou foi o caso do Branco. Branco era casado e tinha duas filhas. Moravam, se não me engano, na Vila Lenzi. Eles estavam em casa quando escutaram um estalo no morro. Ele tentou sair pela porta, que emperrou.
Pulou a janela, pediu para a esposa passar as filhas, e quando pegou a mão da primeira, o morro arrastou a casa. Branco só pode observar, impotente, sua família ser levada pela terra que vinha descendo o morro.
Fizemos várias matérias para ajudá-lo a reconstruir a sua vida. Quando fizemos a última, percebi que cumprimos a verdadeira função do jornalismo.
A nossa função na imprensa é dar voz e rosto as pessoas que precisam de ajuda. E nossas matérias ajudaram muito nessa reconstrução. Foi recompensador.
Esta é a 2ª parte de uma série de cinco reportagens que recontam e refletem sobre a tragédia que assolou Jaraguá do Sul e região em 2008.
Você pode ler a 1ª parte clicando aqui.
A terceira parte do especial será publicada nesta sexta-feira (23).
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