6 de novembro de 2008.
A capa do jornal O Correio do Povo da edição daquela quinta-feira trazia os principais assuntos do dia: uma chamada de atenção para a doença escondida sob a aparência do mau humor, o sobe e desce da cesta básica e o reconhecimento do feito histórico conquistado por Barack Obama, quando foi eleito presidente dos Estados Unidos. Tudo estava tranquilo, tudo parecia calmo.
No meio do que era apenas mais um dia normal, uma pequena nota: “Temporal causa alagamento”, é o título. Água Verde, Vila Lenzi, Estrada Nova, Chico de Paulo, Centro e Baependi foram os seis bairros de Jaraguá do Sul mais afetados, continuava o texto.
Uma nota curta e rápida, igual à chuva daquele dia anterior, de apenas meia hora, mas de chuva intensa, intensa como tudo o que viria dali para frente.
21 de novembro de 2018.
Hoje, dez anos depois de uma das maiores enchentes da história de Jaraguá do Sul e de Santa Catarina, o OCP começa nesta edição uma série de reportagens especiais resgatando um dos momentos mais difíceis do município, cujas lembranças continuam marcadas na cidade e na vida de quem sobreviveu.
Nessa primeira reportagem, o objetivo é lembrar o quanto a natureza, quando desrespeitada, pode trazer riscos.
Queremos também evitar que a tragédia seja esquecida e que com o esquecimento venha a ausência de prevenção do poder público e da sociedade.
Retrospectiva de uma tragédia
Terça-feira, 11 de novembro – Primeiros sinais
Poucos dias depois daquelas primeiras chuvas do mês de novembro de 2008, a edição da terça-feira, 11 de novembro, do Correio do Povo, contava a história de duas moradoras que tiveram suas casas invadidas pela chuva, no fim de semana anterior, 8 e 9 de novembro.
Desta vez, os bairros atingidos foram o Estrada Nova e o Tifa Martins, bairro onde uma chuva de 30 minutos foi suficiente para que a água alcançasse cerca de um metro de altura da casa de Andressa Souza, na rua Irineu Franzner.
Na manhã seguinte ao fim de semana, a Defesa Civil informava que cinco ocorrências tinham sido registradas nos dois bairros. Cinco, um número que infelizmente viria a se multiplicar.
Quarta-feira, 12 de novembro de 2008 – O bebê soterrado
Naquele dia, a capa do Correio do Povo trazia a imagem e a notícia que nenhum jornalista gostaria de dar: uma criança, a um dia de completar dois anos de idade, fora soterrada. O relato, do repórter Frederico Carvalho, emociona até hoje.
Por volta das 7h30 daquele dia, o funcionário de uma metalúrgica, Narciso Rocha Gust, estava saindo de casa quando ouviu um estrondo na casa dos vizinhos. Lorena do Carmo, na época grávida de dois meses, tinha levantado para fazer a mamadeira do filho Raul Marcarini Neto, que dormia no quarto do casal.
O tempo de chegar à cozinha da pequena casa de madeira foi suficiente para que a mãe não conseguisse socorrer o filho e evitar a tragédia.
Horas de chuva provocaram a queda do barranco nos fundos da residência. A água e a lama quebraram as paredes de madeira e invadiram o cômodo soterrando a criança. O pai, Éderson, não estava em casa.
Às pressas, o vizinho entrou na casa para saber o que estava acontecendo e encontrou Lorena sozinha com os filhos pequenos – Bianca e Leonardo. Ele pediu licença e tentou alcançar Raul e resgatá-lo, mas sozinho não conseguiu.
O resgate foi feito pelo subcomandante do Corpo de Bombeiros Voluntários de Guaramirim, Nelson Gonçalves de Oliveira.
Ainda na mesma edição do Correio do Povo, outra matéria informava que em 12 horas de chuva naquele fim de semana, os bombeiros voluntários de Guaramirim e a Defesa Civil de Jaraguá do Sul realizaram aproximadamente 50 atendimentos nas duas cidades.
Os casos mais graves foram registrados no morro do Satuca e no Bairro Nova Esperança em Guaramirim e nos bairros Jaraguá 84 e Barra do Rio Cerro.
No bairro Jaraguá 84, a Ponte dos Bananicultores (próximo à divisa com o bairro Jaraguá 99), desapareceu nas águas do Rio Jaraguá, que invadiu os bananais da região, deixando moradores isolados.
Na Barra do Rio Cerro, moradores da Rua 504 foram alertados a deixar suas casas e procurar abrigo com amigos e parentes.
Quinta-feira, 13 de novembro de 2008 – Avanço dos estragos
Mais uma foto de capa. A edição do dia 13 de novembro relatava o avanço dos estragos causados pelas chuvas, atingindo também a região. Em Corupá, a população vira boquiaberta o principal rio do município transbordar.
A água alcançou cinco metros acima do nível normal e alagou dezenas de casas, em diferentes bairros. A situação beirava ao caos, narrou a repórter Kelly Erdmann, na época.
Com prejuízos na agricultura e em um grande número de casas e estabelecimentos comerciais – o então prefeito Mário Sérgio Peixer decidiu decretar estado de emergência em Guaramirim.
Sexta-feira, 14 de novembro de 2008 – Defesa Civil sem estrutura
A manchete do dia: falta de estrutura prejudica o trabalho da Defesa Civil – São apenas dois servidores em Jaraguá do Sul. Bombeiros e voluntários auxiliam desabrigados.
Em um momento de trégua das chuvas, a edição daquela sexta-feira, 14 de novembro, trazia as primeiras análises e números dos estragos.
O primeiro levantamento, apresentado pela repórter Debora Volpi, informava que até então cerca de 70 famílias haviam sido atingidas de alguma forma, sendo que dez delas precisaram abandonar as próprias residências, alojando-se na casa de amigos e parentes.
Os deslizamentos de terra estavam entre as principais ocorrências registradas pela população. Mas a demanda de atendimentos esbarrava em um problema: a estrutura reduzida da Defesa Civil.
Na época, apenas duas pessoas trabalhavam efetivamente para o órgão. Outras 40 pessoas, no entanto, atuavam como voluntárias, auxiliando somente em casos fora do normal, como os ocorridos naquela semana.
Terça-feira, 18 de novembro de 2008 – Um anjo que salvou vidas
Na terça-feira, 18 de novembro de 2008, o sorriso do pequeno Raul, de dois anos – completados no dia 13 de novembro – iluminava a capa daquela edição: “um anjo que salvou vidas”, trazia a legenda.
Internado na UTI desde que havia sido resgatado, o pequeno Raul não resistiu, tendo a morte encefálica confirmada.
A família decidiu pela doação dos órgãos, que puderam ajudar outras seis pessoas, que aguardavam por um transplante. Até então, Raul fora a primeira vítima da tragédia, que ainda não estava no fim.
Segunda-feira, 24 de novembro de 2008 – Mãe e filhas morrem
Em edição extra do Correio do Povo, a equipe de jornalistas, fotógrafos e profissionais da redação trazia aos leitores o balanço geral dos últimos dias das chuvas e dos estragos. Até aquele momento, mais de quatro mil casas tinham sido atingidas.
A maioria das ocorrências registradas foi de deslizamento de terra e pontos de alagamentos. Cerca de cem barreiras desabaram na cidade, interditando o acesso em diversas pontes e estradas.
Em torno de 30 famílias precisaram abandonar as casas e se alojar na casa de amigos, parentes ou na Arena Jaraguá. Diante do caos, a Secretaria de Assistência Social organizara um mutirão para arrecadação de mantimentos, na Arena Jaraguá, que contou com 50 voluntários.
Ao todo, mais de 200 pessoas trabalharam pelos bairros da cidade para controlar a situação, entre membros da Defesa Civil, funcionários da Prefeitura, bombeiros e policiais. Aulas da rede estadual e municipal foram suspensas, bairros inteiros ficaram sem água e sem luz.
E novamente, as chuvas continuavam a deixar consequências tristes. No sábado, 22 de novembro de 2008, na rua Irineu Franzner, no bairro Tifa Martins, ao perceber os sinais de que a casa iria desabar, o motorista Carlos Alberto Manske tentou salvar a família do pior, mas não conseguiu, não houve tempo.
A mãe, Silvana Martins, então com 30 anos, e as filhas Maria Eduarda, de 4, e Bruna, de 9, morreram soterradas.
Os estragos das chuvas em todo o estado levaram ao então governador Luiz Henrique da Silveira a decretar situação de emergência.
Até a tarde daquele domingo, 23 de novembro, 20 mortes tinham sido registrada em Santa Catarina. As notícias das enchentes e desabamentos ganharam destaque nos noticiários e imprensa nacionais.
Terça-feira, 25 de novembro de 2008 – Cenas de uma tragédia
A tragédia volta a ser capa do jornal. Na edição daquela terça-feira, O Correio do Povo registra outro dos momentos mais dolorosos vividos pela cidade: o desabamento que levou a vida de nove pessoas de uma mesma família.
A repórter Daiane Zanghelini informava que naquele dia os bombeiros e a Defesa Civil continuariam as buscas pelos corpos das pessoas que morreram soterradas na madrugada da segunda-feira, 24 de novembro.
Até o dia anterior, oito vítimas haviam sido localizadas, mas somente uma sobrevivera: Renan Willian Lescowicz, então com 19 anos. O deslizamento acabou soterrando a casa onde Renan morava com os pais e o irmão mais novo, na rua Feliciano Bortolini, bairro Barra do Rio Cerro.
No terreno ao lado, estavam as casas dos tios e primos e dos avós de Renan, que também foram atingidas. Ao todo, nove pessoas da família Lescowicz e Franzner morreram.
Os Bombeiros Voluntários lutavam para conter as chamas que saíam dos entulhos. Um poste que ameaçava cair foi contido por guindastes, provocando uma interrupção no fornecimento de energia elétrica.
Moradores do prédio em frente foram orientados a deixar suas casas para evitar novos acidentes. Cinco residências próximas ao local do desmoronamento foram evacuadas.
O prejuízo também foi imenso para os garagistas. Somente numa das garagens, 40 automóveis e 20 motocicletas foram soterrados. Na outra revendedora, seis veículos foram atingidos pelo deslizamento.
Quinta-feira, 27 de novembro de 2008 – 14 vítimas
As fortes chuvas que deixaram Jaraguá do Sul em situação caótica faziam mais uma vítima: o pedreiro Valdemir Alexandre da Silva, 39 anos, fora encontrado às margens do Rio Jaraguá, na rua Wolfgang Weege.
O corpo foi encontrado nas imediações do Parque Malwee, na manhã do dia anterior, 26 de novembro. Alexandre esteve desaparecido por vários dias, desde a enxurrada no fim de semana anterior.
Os dias seguintes
Os problemas causados pelas chuvas continuaram ainda por vários dias: riscos de deslizamento, aumento de erosão, moradores isolados no bairro Rio Molha e sem água e energia elétrica, pessoas desabrigadas, casas destruídas, barro escorrendo pelas ruas.
Mas aos poucos também as pessoas foram se reerguendo, muito com o apoio de outras pessoas, algumas não atingidas diretamente pela tragédia, mas que sentiam as perdas em seu próprio coração e foram solidárias.
O saldo da tragédia foi pesado: 1,5 mil pessoas desalojadas, 15 famílias desabrigadas, sete mil casas atingidas, 15 casas destruídas, 13 mortes em Jaraguá do Sul e uma morte em Guaramirim, mas as lições de amor, solidariedade e responsabilidade ficaram para sempre.
Dez anos depois, Jaraguá do Sul aprendeu muito, mas cresceu mais ainda: como cidade, como irmandade.
Esta é a 1ª parte de uma série de cinco reportagens que recontam e refletem sobre a tragédia que assolou Jaraguá do Sul e região em 2008.
A segunda parte do especial será publicada nesta quinta-feira (22).
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