Uma pesquisa de Doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Fundação Universidade Regional de Blumenau (PPGDR/FURB) investigou o consumo de cuca em três municípios brasileiros que receberam imigrantes germânicos durante o século XIX.
O estudo, que foi realizado com moradores dos municípios de Blumenau (SC), Domingos Martins (ES) e São Leopoldo (RS), revelou que o consumo de cuca permanece amplamente difundido, mas o hábito e a habilidade de produzir a cuca em ambiente doméstico apresenta sinais de declínio, tendo praticamente desaparecido no município gaúcho. O estudo foi conduzido pela pesquisadora Daniela Matthes, Doutora em Desenvolvimento Regional, sob orientação do professor Maiko Rafael Spiess, Doutor em Política Científica e Tecnológica.
Em Blumenau, o saber-fazer ainda é predominante, embora apresente sinais de declínio. No município, a cuca consumida provém tanto de padarias e cuqueiras, quanto do ambiente doméstico. Em Domingos Martins, no Espírito Santo, a produção doméstica é predominante; enquanto em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, o hábito de produzir a cuca em casa praticamente desapareceu.
Matthes, que já havia adotado a cuca como objeto de estudo de sua pesquisa de Mestrado em Desenvolvimento Regional, alerta para a escassez de estudos acadêmicos sobre alimentação regional sob o prisma do desenvolvimento regional. Na avaliação da pesquisadora, a compreensão do atual estágio de difusão do saber-fazer e do consumo de cuca pode fornecer subsídios para a elaboração de políticas públicas voltadas à preservação de tal alimento tradicional, além de contribuir para um eventual processo de transformação da cuca em patrimônio imaterial ou alimento com indicação geográfica.
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A análise do modo como cada um dos municípios se desenvolveu fornece indícios sobre os fatores que contribuíram para esse cenário. O panorama identificado pela pesquisadora indica forte associação entre o nível de urbanização dos municípios e a preservação do hábito de produzir o alimento em ambiente doméstico: Domingos Martins (ES), onde predomina o saber-fazer da cuca, é um município predominantemente rural, enquanto São Leopoldo (RS) é quase completamente urbano.
O modo como as políticas públicas de turismo exploram ou não questões relacionadas à germanidade também é um dos fatores de influência sobre o cenário identificado: em Blumenau (SC) e Domingos Martins (ES), tais questões são exploradas como atrativos turísticos, aspecto ausente em São Leopoldo (RS), em que as políticas públicas adotam perspectiva mais pluralista em relação às etnias.
De pão a bolo: estudo identificou diferentes tipos de cuca
A pesquisa identificou seis tipos de derivados do Streuselkuchen nos municípios estudados. Em comum entre eles, o fato de serem massas doces, produzidas com fermento biológico ou químico e com cobertura de farofa doce.
Em Blumenau, consome-se a cuca de massa baixa, com ou sem recheio, assada em forma retangular de laterais baixas. Em Domingos Martins (ES), os moradores produzem e consomem três tipos de derivados: o Pão Curra, de massa alta e estreita, produzido com fermento biológico e coberto por açúcar e canela; o Simftbroud, massa estreita e baixa feita com fermento biológico e cobertura de açúcar e canela; e a Streuselkuchen, massa baixa assada em forma retangular, recheada com frutas e coberta com farofa de trigo, açúcar e canela.
Em São Leopoldo (RS), foram identificados dois tipos: a cuca tipo pão, com massa alta produzida com fermento biológico e coberta com farofa (forma mais consumida no município, de acordo com os informantes) e a cuca de massa baixa coberta por frutas e farofa doce, menos comum. Embora haja variações, a chamada comensalidade – termo empregado pelos antropólogos para designar a prática de partilhar o alimento – é uma característica ainda preservada do consumo de cuca nos municípios analisados.
A cuca consumida hoje deriva diretamente do chamado Streuselkuchen (termo que designa um bolo coberto com farofa) trazido pelos imigrantes germânicos quando da fundação das primeiras colônias no Brasil. Segundo Matthes, acredita-se que o hábito de fazer e consumir a cuca tenha chegado à região do Médio Vale do Itajaí já com o primeiro grupo de imigrantes, em 1850. As mulheres, a quem cabia a execução de tarefas domésticas, começaram a reproduzir no novo território as receitas às quais já estavam acostumadas, entre elas o Streuselkuchen.
A dificuldade em ter acesso aos ingredientes originais deu início a um processo de reconfigurações que resultou nos derivados atualmente consumidos. Matthes explica que, quando os imigrantes chegaram, tentaram cultivar as sementes que haviam trazido da Europa. As condições climáticas de alta temperatura e umidade, no entanto, impediram o cultivo do trigo, base da receita. Registros encontrados pela pesquisadora dão conta de que algumas famílias faziam adaptações, usando insumos como milho e mandioca.
Como não podia ser cultivado, o trigo precisava ser comprado e não estava sempre disponível: “era um grande evento quando vinha o trigo para essa região. Muita gente caminhava longos percursos para comprar o trigo, para ter a cuca no Natal porque, até então, era uma receita específica do Natal”, relata a pesquisadora.
O açúcar branco também não era comum e precisava ser comprado. Como as famílias praticavam agricultura de subsistência, era preciso vender excedentes para obter o dinheiro que seria utilizado na compra dos ingredientes da cuca, o que exigia uma grande organização por parte das famílias.
A substituição do levain, fermento natural que exige um longo processo de fermentação, pelo fermento biológico industrializado, cujo tempo de fermentação é menor, e, posteriormente, pelo fermento químico, é apontada pela pesquisadora como elemento central para a transformação da cuca, que deixou de ser pão e passou a ser bolo quando dispensou o tempo de fermentação a partir do uso de fermento químico.
“A sociedade está em mudança, as pessoas estão cozinhando cada vez menos. A indústria vem oferecendo facilidades, como alimentos prontos ultraprocessados. Durante a pesquisa de mestrado, eu encontrei um pó pronto que você só mistura ovo, leite e a cuca está pronta. Infelizmente, muitas padarias usam esse artifício. Cabe ao poder público incentivar que se continue consumindo, algo que me parece que tem sido feito. Outra questão importante é incentivar as famílias de agricultores, que detêm muito conhecimento sobre os alimentos tradicionais que se fazia antigamente, para que continuem esse trabalho que é tão importante”, destaca a pesquisadora.