“O Estado só aparece na vida dessas pessoas quando é para meter o pé na porta”, critica defensora pública

Por: Schirlei Alves

23/04/2018 - 05:04 - Atualizada em: 24/04/2018 - 10:50

A defensora pública que atua no Tribunal do Júri em Florianópolis, Fernanda Mambrini Rudolfo, critica o treinamento militarizado da Polícia Militar, que, na avaliação dela, incentiva a ação violenta durante as abordagens.

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Fernanda destaca o papel do Estado no desenvolvimento das facções criminosas, uma vez que perdeu o controle das prisões quando abarrotou cadeias pelo País – cujos presos se tornaram soldados dos grupos organizados. Na avaliação da especialista, o investimento para reduzir a violência deveria percorrer o caminho das ações sociais e da educação. Confira a entrevista:

A SSP apresentou índices de redução de violência e aumento de mortes em intervenções policiais. As forças de segurança dizem que é reflexo da maior presença policial e consequente reação de criminosos armados. Qual é a sua avaliação?
Fernanda Mambrini Rudolfo: Essa afirmação no sentido de que a polícia estaria mais presente já é contradita pelos próprios números. Se, de fato, fosse isso, teria aumento no número de crimes, em decorrência das prisões em flagrante e das apreensões. A tendencia seria aumentar o registro, ou seja, mais prisões e flagrantes.

A senhora costuma acompanhar os homicídios e tentativas de homicídios em confrontos policiais, uma vez que atua na Vara do Júri. Qual é a sua percepção com relação à ação da polícia em abordagens que terminam em morte?
Fernanda: Se você acompanhar duas operações na mesma semana, sendo uma da Polícia Civil e outra da Polícia Militar, vai perceber a diferença. Não estou querendo defender essa ou aquela corporação, mas quando a PC vai, embora ocorram aspectos de violações (de direito), não dispara um tiro, quando a PM vai, tem confronto. O treinamento (da PM) é voltado para o confronto. Existe uma mentalidade deturpada, não de todos os policias, mas o treinamento é direcionado nesse sentido. Infelizmente, são os resquícios da militarização da polícia, da ditadura.

A senhora defende a desmilitarização da polícia?
Fernanda: Existe uma luta pela desmilitarização. Os comportamentos ainda são pautados nas mesmas regras que a gente via no período ditatorial, muito arcaica, de como funciona a segurança pública. Acredito na adoção dessa medida, mas tão cedo isso não vai ocorrer.  Acho que reduzira os casos de agressão, de violações de direitos e de letalidade.

A reportagem esteve na Vila União há duas semanas, um das comunidades mais vulneráveis de Florianópolis. Os moradores relataram que têm medo da polícia. Qual é a sua percepção?
Fernanda: Eu acho que eles (Polícia Militar) veem o ingresso nessas comunidades como território inimigo quando, na verdade, deveria haver mais empatia com os moradores. Embora, eventualmente, sejam cometidos crimes nas comunidades, as pessoas não merecem um tratamento mais violento do que as outras pessoas, mesmo as que estão cometendo crime, não legitima. As estratégias (de enfrentamento) são as mesmas de guerra. Até pouco tempo atrás, o Bope entoava cantos (nos treinamentos) que falavam em deixar corpos no chão.

A SSP divulgou a estratégia adotada para controlar a violência, que consiste em entrar com o trabalho ostensivo da polícia para retomar espaço e, na sequência, com ações sociais. A senhora concorda?
Fernanda:
Eu acho que está inversa, o tráfico se espraia porque não existem alternativas, a gente vê crianças, cujos pais vão para o trabalho o dia inteiro, e elas ficam um turno sem fazer nada. Acabam tendo como ídolos os traficantes da comunidade, em vez de ter uma quadra para jogar futebol, uma praça para brincar, aula de inglês, atividades extracurriculares que ocupassem as ocupassem. No final de semana eles não tem lazer, até ir a praia é difícil porque a passagem de ônibus é cara. Não adianta querer combater o tráfico para depois fazer isso. Todos os que se envolvem (e atendo aqui na defensoria) pararam de estudar na 5ª ou 6ª série.

O que a senhora acredita que poderia ser feito para mudar essa realidade?
Fernanda: As organizações criminosas surgiram em decorrência de violações estatais. São pessoas que se uniram para combater a violência por parte do Estado. Não estou dizendo que a ação deles é legítima, porque eles fazem isso através da pratica de crimes também. Mas, o Estado fomentou isso.

Elas (as facções) fazem, muitas vezes, um estado paralelo, com justiça própria, conselho e proteção, uma organização que o estado deveria ter e não tem. O Estado só aparece na vida das pessoas quando é para meter o pé na porta e deixar a porta quebrada de pessoas que não tem dinheiro nem para botar comida na mesa, quanto mais para comprar uma porta.

Em vez da quantidade de prisões que a gente vê e que não está solucionando, deveria haver o fortalecimento da atuação estatal na prestação de serviços sociais, de educação e saúde. Mas, esses serviços precisam estar presente a todo tempo e não apenas na questão da segurança pública, como consequência. É a longo prazo, mas tem que começar em algum momento.

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