As mensagens de WhatsApp trocadas entre assessores do ministro Alexandre de Moraes, reveladas pela Folha de S. Paulo nesta semana, expuseram uma série de possíveis irregularidades na formulação de relatórios sobre “desinformação” que embasaram decisões do ministro contra aliados de Jair Bolsonaro e comentaristas políticos de direita no âmbito do inquérito das fake news.
Os relatórios foram formulados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mais especificamente pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), a fim de que Moraes adotasse medidas criminais no STF, como cancelamento de passaportes e bloqueio de redes sociais.
Segundo juristas, as revelações feitas por meio de áudios e mensagens de Whatsapp demonstram concentração de poder, arbítrio na escolha dos alvos a serem investigados e até mesmo manobras para “disfarçar a origem das demandas”, violando princípios do direito, bem como regras do Código de Processo Civil.
Conforme divulgado pela Folha, em nenhum dos relatórios aos quais o jornal teve acesso havia a informação oficial de que eles haviam sido produzidos a pedido do ministro ou do seu gabinete do STF. Nos relatórios, constava que eram “de ordem” de um juiz auxiliar do TSE. Em outros, oriundos de uma denúncia anônima.
As mensagens a que a Folha teve acesso abrangem o período de agosto de 2022, já durante a campanha eleitoral, a maio de 2023, quando Moraes ocupava, além de sua cadeira no STF, a presidência do TSE. O conjunto de diálogos mostra ao menos duas dezenas de casos em que o gabinete de Moraes no STF solicita de maneira extraoficial a produção de relatórios pelo TSE.
Após as revelações, iniciadas na terça-feira (13), o ministro se manifestou no início de sessão do Supremo na quarta-feira (14). Ele disse que as informações solicitadas eram objetivas e públicas. “Seria esquizofrênico eu, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral [à época], me auto oficiar”, afirmou. Segundo ele, como presidente do TSE, ele tinha poder de polícia para determinar a feitura dos relatórios.
“Nenhuma das matérias preocupa meu gabinete, me preocupa, ou a lisura dos procedimentos. Todos os procedimentos foram realizados no âmbito de investigações já existentes”, disse, citando os inquéritos das fake news e das milícias digitais, relatados por Moraes no Supremo.
Confira algumas das mensagens divulgadas pela Folha de S. Paulo, trocadas entre assessores tanto em formato de áudio, quanto de texto, que exemplificam os procedimentos adotados, acompanhadas por explicações de juristas que apontam possíveis irregularidades.
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“Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse para vermos se dá para bloquear e prever multa”
A primeira da série de matérias divulgadas pela Folha mostra que no dia 22 de novembro de 2022 o juiz assistente de Moraes no STF, Airton Vieira, teria repassado uma mensagem do próprio ministro para Eduardo Tagliaferro, chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE, na qual solicita que ele analise as mensagens do jornalista Rodrigo Constantino para “vermos se dá para bloquear e prever multa”.
Logo em seguida, o juiz assistente ainda teria destacado “bloqueio e multa pelo STF. Capriche no relatório, por favor”.
Tagliaferro, então, argumenta que já apresentou um relatório com material que demonstra que a pessoa em questão, o jornalista Rodrigo Constantino, já vinha falando nas redes sociais sobre o artigo 142 da Constituição Federal, que discorre sobre as responsabilidades das Forças Armadas.
Airton teria respondido que Moraes teria “cismado”, o que quando o ministro cisma é “uma tragédia”. Ele prossegue dizendo que, se Tagliaferro não incluísse o conteúdo conforme indicado pelo ministro, Moraes encontraria outras publicações de Constantino, com o conteúdo que ele pediu que fosse inserido no relatório, dizendo que somente os assessores não encontravam.
Analistas avaliam que essa troca de mensagens demonstra abuso de poder por parte do ministro, já que escolhe alvos específicos, com uma pena já definida em mente para que seja feita a investigação. Isso contraria as práticas de isenção e neutralidade conforme explica o advogado especialistas em liberdade de expressão André Marsiglia.
Ele afirma que direcionar e fabricar investigação e escolher alvo são crimes de abuso de poder. Nesse caso, o poder de polícia que é prerrogativa do TSE e que, na condição de presidente do órgão, o ministro Alexandre de Moraes passou a desfrutar, “é usado de forma desviada de sua função original: investigar sem ver a quem e julgar apenas quando provocado”.
Como os áudios de Airton levam a crer, o ministro não só sabia exatamente a quem investigar, como, diante das evidências apresentadas por seu assessor, direciona a condução do relatório para que se enquadre na pena que ele deseja aplicar a Constantino.
É como se, diante de um julgamento, o juiz pedisse que a acusação que apresentasse determinadas provas para que ele pudesse condenar o réu a uma determinada pena.
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“Use a sua criatividade”
Na mesma linha que juristas afirmaram que configuraria o abuso de poder do item anteriormente abordado, Airton teria afirmado para Tagliaferro, segundo as mensagens vazadas pela Folha de S. Paulo, que ele usasse “a criatividade” para encontrar material da revista Oeste, publicação com viés de direita, que se enquadrasse na demanda feita por Moraes para que determinada sanção, já prevista, fosse aplicada.
No dia 6 de dezembro de 2022, o juiz assistente envia um link da revista para Tagliaferro e demanda: “vamos levantar todas essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”.
Já no dia 7 de dezembro, a conversa segue no grupo integrado pelos dois e por Marco Antônio Martins Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE. Por volta das 17h, Tagliaferro teria avisado que encontrou “publicações jornalísticas”, que “não estavam falando nada” na Revista Oeste. Em seguida ele pergunta o que deveria colocar no relatório.
Airton então teria respondido: “use a sua criatividade… rsrsrs.” E teria dito ainda para que ele pegasse “uma ou outra fala, opinião mais ácida e… O Ministro entendeu que está extrapolando com base naquilo que enviou… “, ao que Tagliaferro responde dizendo que vai dar um “jeitinho”.
Ou seja, mais uma vez as mensagens reveladas pela Folha mostram que Airton demandou que fossem inseridas determinadas informações no relatório para que a peça demonstrasse o entendimento de Moraes de que a Revista Oeste estava “extrapolando” o que o ministro entendia como aceitável de ser publicado.
A pena também já estava prevista: a desmonetização dos canais da publicação. Marsiglia enfatiza o comportamento abusivo, com as investigações sendo direcionadas a certos alvos, “chegando-se a dizer que fosse usada criatividade e capricho para pesar a mão na investigação de jornalistas e veículos”.
A Revista Oeste informou nesta semana que teve seu canal no Youtube desmonetizado em janeiro de 2023, por “publicação de conteúdo nocivo”, sem que a plataforma tenha explicado qual seria este conteúdo.
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“O ministro pediu para verificar as redes sociais dos deputados bolsonaristas”
No dia 6 de outubro de 2022, Airton teria encaminhado outra mensagem para Tagliaferro solicitando que ele novamente investigasse alvos específicos, os deputados “bolsonaristas”.
“Boa noite, Eduardo! Tudo bem?! O Ministro pediu para verificar, o mais rápido possível, as redes sociais dos deputados bolsonaristas (os nomes envio abaixo), ver se estão ofendendo Ministros do STF, TSE, divulgando “fake news”, etc., para fins de multa. Ele tem bastante pressa… Obrigada”, demandou o juiz assistente de Moraes.
Logo depois, ele envia os nomes dos alvos: Bia Kicis, Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Major Vitor Hugo, Marco Feliciano, Cabo Junio Amaral e Filipe Barros (todos do PL), Otoni de Paula (MDB) e Daniel Silveira (então do PTB).
Em seguida, o juiz assessor afirma, segundo as mensagens, que a PET – petições por meio das quais Moraes ordena medidas via STF – deveria seguir o “padrão de pegar o conteúdo, bloquear tudo e mandar ouvir em 5 dias”.
Mais uma vez, as demandas de Moraes, repassadas por Airton para Tagliaferro, demonstrariam que os relatórios de investigação eram solicitados no gabinete do ministro, visando alvos definidos e já com as sanções estipuladas.
Isso viola o princípio acusatório, segundo o qual o juiz é inerte, não toma nenhum dos lados numa investigação, e apenas decide a partir da provocação das partes envolvidas – a polícia, como órgão de investigação; o Ministério Público, que analisa as provas com o objetivo de acusar, aprofundar o inquérito ou pedir o arquivamento do caso; e a defesa dos investigados, a quem cabe rebater as suspeitas e fazer valer seus direitos no curso do inquérito.
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“Ele quer pegar o Eduardo Bolsonaro. A ligação do gringo com o Eduardo Bolsonaro”
No dia 4 de novembro de 2022, Airton teria enviado uma mensagem para Tagliaferro afirmando que “ele quer pegar o Eduardo Bolsonaro. A ligação do gringo com o Eduardo Bolsonaro”. E Tagliaferro pergunta “será que tem?”
Segundo a Folha, o “gringo” é o marqueteiro argentino Fernando Cerimedo que, naquele mesmo dia, havia feito sua primeira live afirmando que houve fraude no segundo turno das eleições presidenciais no Brasil em 2022.
No dia seguinte, Tagliaferro teria respondido que havia um “vídeo do Eduardo Bolsonaro com a bandeira do jornal que fez a live de ontem, conseguimos aí relacionar ele àquilo”. “Bom dia! Que beleza”, respondeu o juiz auxiliar de Moraes.
Já no dia 6 de novembro, Tagliaferro teria afirmado para Marco Antônio Vargas que Cerimedo e Bolsonaro eram “amigos já faz 10 anos” e que, se prendesse o deputado “o Brasil entra em colapso”. Ele então envia o relatório denominado “TSE – Relatório – Análise Manifestações Antidemocráticas Fernando Cerimedo” e diz: “veja se o ministro vai gostar”.
Conforme relatado pela Folha, o relatório tem prints dos vídeos de Cerimedo e usa fotos do argentino com Eduardo Bolsonaro para concluir pela relação dos dois há mais de dez anos. Em sua conclusão, o documento afirma que “ainda em análise, identificamos, conforme exposto, a ligação entre Eduardo Bolsonaro e o autor das lives, Fernando Cerimedo, o quais (sic) se conhecem há muitos anos”.
Depois, Marco Antônio Vargas teria avisado Tagliaferro que poderia bloquear os sites indicados e informa que Moraes havia gostado do relatório e que estava “disparando ordens”. Airton ainda teria avisado que iriam determinar o bloqueio do site e das contas do marqueteiro e dito a Tagliaferro para “dar ciência à PGR”.
Perseguição política no STF pede resposta contundente
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“A partir deste relatório e desse em diante onde você coloca STF, você coloca, por favor, TSE”
A frase acima veio em uma mensagem na qual Airton teria explicado para Tagliaferro que a origem dos relatórios deveria ser remetida ao TSE e não ao STF como constava dos primeiros documentos. Na mensagem de Airton, enviada em 10 de outubro de 2022, às 22h51, ele teria explicado para Tagliaferro que havia conversado com Cristina Yukiko Kusahara Gomes, chefe de gabinete de Moraes no STF, a esse respeito.
“Boa noite, Eduardo. Tudo bem? Seguinte, conversando com Cristina, ela pediu que a partir deste relatório e desse em diante onde você coloca STF, você coloca, por favor, TSE. O número do processo nunca ficar em aberto, colocar, no caso desse e dos próximos, a não ser que tenha alguma outra contraindicação, o 4.781 [número do inquérito das fake news]. Colocar como de ordem do Dr. Marco Antônio”.
Airton ainda teria argumentado que a razão da mudança seria “porque atualmente o ministro passa por uma fase difícil, qualquer detalhe, qualquer peninha pode virar amanhã ou depois mais um objeto de dor de cabeça para ele”. A afirmação, por si, demonstra o conhecimento dos assessores de que havia questões procedimentais na condução da elaboração e envio dos relatórios.
O juiz assistente prossegue dizendo, segundo a Folha, que “para todos os fins, fica de ordem dele, do Dr. Marco, que ele manda enviar pra gente e aí tudo bem. Ninguém vai poder questionar nada, etc, falar de onde surgiu isso, caiu do céu, a pedido de quem, etc”, deixando claro que o procedimento que estava sendo adotado tinha incorreções.
Naquele mesmo dia, mais tarde, Airton volta a justificar a mudança no procedimento, dizendo que “se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada, digamos assim. Mas como um juiz instrutor do Supremo manda pra alguém lotado no TSE, esse alguém sem mais nem menos obedece e manda um relatório, entendeu? Ficaria chato. Dai nós termos evoluído no raciocínio e pensado que ficaria melhor um juiz do TSE mandando pra nós, aí ninguém pode questionar em nada”, afirma.
Em suas redes sociais, o ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol, que chefiou a Operação Lava Jato no Paraná, avaliou que tal conduta de “ocultação” da origem das ordens vindas do gabinete de Moraes, pode caracterizar “falsidade ideológica”.
“As mensagens vazadas de Alexandre de Moraes comprovam as suspeitas, que existiam desde 2019, de que o ministro atua como investigador, procurador e juiz, usando a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE como ‘laranja’ para encomendar relatórios sobre o que gostaria de decidir, em que a iniciativa do ministro era ocultada ou disfarçada, o que pode caracterizar falsidade ideológica”, escreveu Dallagnol nas redes sociais.
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“Nem que eu crie um e-mail”
Em uma outra conversa divulgada pela Folha, no dia 4 de dezembro de 2022, o ponto principal é novamente o procedimento utilizado entre os assessores de Moraes para debater a produção dos relatórios e sua procedência.
Às 12h daquele dia, Marco Antônio Vargas pergunta a Tagliaferro se o “Dr. Airton está te passando coisas no privado”. Quando o chefe do órgão de combate à desinformação responde “sim”, Vargas faz uma brincadeira em relação ao método pouco ortodoxo utilizado por eles, como se pudesse implicar na anulação das provas colhidas. Ele afirma “falha na prova. Vou impugnar”.
Em resposta, Tagliaferro admite sua apreensão em torno da questão. “Temos que tomar cuidado com essas coisas saindo pelo TSE. É seu nome”, diz ele. Em seguida, chega a sugerir um possível caminho para “aliviar isso”. “Nem que crie um e-mail para enviar para nós uma denúncia.”
Da mensagem, é possível depreender que foi cogitada a criação de um e-mail para que as solicitações oriundas do gabinete de Moraes fossem enviadas por um e-mail aleatório para o TSE, a fim de mascarar as ordens de Airton. Desse modo, o gatilho para o início das investigações ficaria justificado e desvinculado do gabinete de Moraes no STF. Ou seja, a conversa sugere que os próprios assessores teriam ciência da impropriedade do processo que estava sendo adotado para a produção de relatórios.
O Dr. Ezequiel Silveira, advogado da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de janeiro, afirmou que pelo princípio da inércia da jurisdição (art. 2º do Código de Processo Civil) exige-se a provocação de terceiros para que ações sejam tomadas em qualquer instância ou tribunal.
Assim, a iniciativa do ministro de buscar em redes sociais postagens de seus desafetos políticos e em seguida, acionar um órgão (sob sua responsabilidade) para lhe provocar a iniciativa, é ilegal. O jurista afirma que essa irregularidade é atestada pelos próprios servidores quando um deles afirma, por exemplo, “nem que crie um e-mail”, para que as denúncias fossem enviadas para eles.
Silveira avalia que, não fosse assim, Alexandre de Moraes “poderia ter imposto as sanções às vítimas, de ofício, sem provocação de ninguém, o que não ocorreu. Ao revés, buscou-se maquiar o acionamento do TSE como se fosse iniciativa de terceiros e não do próprio julgador”.
O que disse o gabinete de Moraes sobre as conversas vazadas
Em nota, o gabinete do ministro Alexandre de Moraes negou quaisquer irregularidades nas requisições dos relatórios. Moraes argumentou que o TSE, “no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas”.
“Os relatórios simplesmente descreviam as postagens ilícitas realizadas nas redes sociais, de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas às investigações de milícias digitais”, diz o comunicado.
O gabinete do ministro reforçou que “todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República”.
À Folha, Tagliaferro disse que não se manifestaria sobre o caso, mas que somente cumpria todas as ordens que lhe eram dadas e não se recordava de ter cometido qualquer ilegalidade.
* Informações da Gazeta do Povo.