Judicialização da Saúde requer uma solução do poder público

Por: Elissandro Sutil

14/03/2018 - 06:03 - Atualizada em: 19/03/2018 - 11:28

O acesso a medicamentos para doenças raras, como para o tratamento da HPN, que levou à morte do empresário de Guaramirim, Claudio Maluta, em fevereiro, depois de ter o medicamento negado, é uma das diversas situações dentro da judicialização no país. Segundo dados do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2017, até o dezembro de 2016 havia mais de um 1,3 milhão de processos ajuizados com demandas à Saúde.

Comparando o dado do relató- rio de 2017 em relação aos relatórios anteriores do CNJ, é possível ver um crescimento significativo de novos processos. Conforme o juiz federal Clenio Jair Schulze, presidente do Comitê Estadual de Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência da Saúde de Santa Catarina (Comesc), em artigo publicado em setembro do ano passado, as medições anteriores dos relatórios indicaram 854,5 mil demandas em 2015, 392,9 mil processos em 2014 e 240,9 mil processos judiciais em 2011.

Quanto a valores, o Ministério da Saúde afirma que o impacto causado por decisões judiciais obrigando a compra de medicamento não oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) chega a R$ 7 bilhões por ano. Em Santa Catarina, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES), dos R$ 3 bilhões destinados à Saúde em 2017, R$ 120 milhões foram destinados à judicialização. Em Jaraguá do Sul, o valor da despesa no ano passado chegou a quase R$ 500 mil.

A judicialização da saúde, explica a advogada Karina Guidi Valverde Martins, pode ser entendida como a busca por meio do Poder Judiciário de acesso a medicamentos, tratamentos cirúrgicos ou não, negados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com base no direito universal à Saúde. “A palavra judicializar nada mais é do que o ato de ingressar com ação judicial buscando a prevalência de um direito que, no caso em questão, é o direito à saúde”, afirma Karina.

No entanto, a advogada observa que nem sempre o Estado pode cumprir com as determinações judiciais recebidas, por causa da ineficiência do poder público, “para não dizer falência do Estado em fornecer tais serviços como, por exemplo, leitos na UTI, medicamentos, exames de alta complexidade, transplantes e etc”. “Fato é que políticas públicas ineficientes deixam o usuário do sistema público de saúde à mercê da sorte, necessitando, inúmeras vezes, se socorrer ao Poder judiciário para garantir o seu direito mais caro, a vida”, constata a advogada.

Sistema subfinanciado também sofre abusos

Essa inadequação dos serviços públicos à necessidade da população teria como causa primária o subfinanciamento da Saúde, agravado pela gestão existente da administração pública, afirma a advogada Lenir Santos, especialista em direito sanitário pela Universidade de São Paulo (USP). “É um sistema (público de saúde) que gasta R$ 2,90 por pessoa por dia, cerca de R$ 1,4 mil por ano por pessoa em média, quando na Inglaterra, Espanha, Portugal, Itália, França, que são sistemas universais como o brasileiro, gastam mais de R$ 2,5 mil dólares per capita. Estamos atrás da Bolívia na aplicação, em relação ao PIB, na Saúde, atrás do Chile, da Argentina”, afirma Lenir, em debate no Tribunal de Contas do Estado (TCE/SC), em setembro passado.

Para a advogada, a judicialização se iniciou pela necessidade da população, mas teve aumento crescente em 15 anos, incentivada por fatores como a facilidade em conseguir liminar determinando o atendimento pleiteado individualmente, abrindo portas para que as demais pessoas com problemas semelhantes buscassem a Justiça.

“Mas isso também possibilitou todos os tipos de abusos”, ressalva. Entre esses abusos, há casos em que as ações judiciais são patrocinadas “às escondidas” por laboratórios, empresas farmacêuticas, havendo ainda situações de conluio entre o laboratório e o médico, para que esse profissional prescreva determinada medicação, e o envolvimento com advogados. “São Paulo levantou um medicamento que tinha 79 ações pleiteando o mesmo medicamento, mesmo laboratório, mesmo advogado. Quer dizer, é para refletir que deve ter alguma coisa errada”, relata.

Incorporação ao SUS seria um caminho

Na tentativa de diminuir a judicialização, o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem fazendo série de recomendações, na intenção de aproximar as partes – Executivo e Judiciário. O Comesc, que é um braço do CNJ composto por representantes Ministério Público, magistrados, gestores públicos, sociedade civil, já recomenda a observação a protocolos – semelhante ao de Jaraguá do Sul – pelos magistrados, para ajudar nas decisões. O objetivo é conceder vitória aos pacientes nos casos em que a necessidade é comprovada.

Há também movimentos para que medicamentos e produtos muito judicializados sejam incorporados pelo SUS, acabando com a necessidade de buscar tal medicação na Justiça – que, com suas decisões muitas vezes acaba fazendo a incorporação no lugar do Estado, sem as devidas análises como de eficácia e custo-benefício. Em Jaraguá do Sul, a secretaria conseguiu que fosse incorporado ao sistema público as fórmulas alimentares – leite em pó – para alérgicos à proteína do leite.

Outra discussão também proposta pela especialista em direito sanitário Lenir Santos trata sobre a integralidade das ações de atenção à saúde, que hoje vão “da vacina ao transplante”. Ela pondera que Estado e sociedade precisam discutir sobre a possibilidade de oferta de serviços, sobretudo de alta complexidade. Embora iniciativas como essa, em todo o país, contribuam para a diminuição dos processos judiciais, a advogada observa que não se atua nas causas primárias, ou seja, no subfinanciamento do sistema, agravado ainda pelo congelamento nos gastos públicos por 20 anos.

“Com a Emenda Constitucional 95, que congela os gastos públicos e vai congelar os gastos na Saúde, é claro que a gente vai ter inclusive um aumento de judicialização, porque a gente vai ter uma diminuição de serviços”, pondera.

Protocolos ajudam a diminuir judicialização

O secretário de Saúde de Jaraguá do Sul, Jonas Schmidt, explica que o município há anos vem adotando a prática de aplicar um protocolo para casos de judicialização. Quando um paciente chega com a receita de medicamento que não é oferecido pelo SUS, uma equipe multidisciplinar – com advogados, médicos, peritos, farmacêuticos – faz toda a análise do requerimento, incluindo receita que contenha o nome do medicamento listado pelo SUS e não o nome comercial, o caso passa para o perito da equipe que vai analisar a questão clínica do paciente, a necessidade do medicamento, quais as alternativas que existem dentro do SUS, entre outras análises.

Uma das situações, informa o secretário, é o paciente não aceitar a alternativa proposta pelo município, decidindo judicializar o caso para ter acesso ao que foi receitado pelo médico. Há também os casos em que a necessidade do paciente também é atestada, mas não há alternativas no SUS. Schmidt explica que o município deve atender à população dentro do regramento do SUS, ofertando o que é previsto, mas que poderia alocar recursos próprios para bancar o medicamento ou procedimento que está fora do sistema. Acrescenta que o município mantém lista de medicamentos até maior do que a lista nacional do SUS e que isso é possível pela aplicação de recursos próprios, mas pontua que são produtos da atenção básica, que é área da Saúde pela qual o município tem reponsabilidade. Média e alta complexidade são responsabilidade dos governos estaduais e federal.