Encaminhada no fim de setembro pelo governo federal por meio de uma Medida Provisória, a reforma do ensino médio prevê grandes mudanças nas diretrizes educacionais aplicadas aos três últimos anos da formação básica. Com propostas como o aumento da carga horária e a criação de itinerários de ensino, o documento promove a maior modificação já feita na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), criada em 1996.
No Dia dos Professores, comemorado hoje (15), o Correio do Povo resolveu reacender o debate e questionar: afinal, como encarar as mudanças e garantir que a reforma alcance os objetivos centrais de diminuir a evasão e melhorar a qualidade do ensino?
Para a vice-reitora de graduação da Univali e doutora em educação, Cássia Ferri, esta é uma questão que perpassa por muito debate e reflexão. Mais do que focar questões específicas – e polêmicas – do documento, a especialista compreende que é preciso analisar dois grandes cernes: como estruturar o processo de implementação do ensino integral e como organizar o conteúdo que será oferecido dentro do novo modelo.
“A partir do momento que o jovem está sete horas dentro da escola, isso exige um conjunto de medidas estruturais do ponto de vista de oferecer um suporte para estes jovens. Neste contexto, é preciso se perguntar o que será feito dentro destas sete horas, como organizar este conhecimento para que ele não faça mais do mesmo”, diz.
Segundo Cássia, ao contrário do que se pensa, a reforma do ensino médio é um debate que acontece desde 2010 no Brasil e que, desde 2013, tramita em formato de projeto de lei pela Câmara dos Deputados. Daí o interesse de buscar mais celeridade no processo, até então estagnado. Entretanto, a questão maior, segundo especialista, está no fato de que o documento apresenta muito pouco sobre como irá funcionar a aplicação destas ações. É aí que entra o debate.
“O que é necessário agora é discutir como isso vai ser conduzido, como se preparar, quais as prioridades de investimentos. Apesar de parecer radical, o texto do projeto não tem definições específicas, as ideias estão absolutamente em aberto. Um processo sério de conversa é imprescindível”, defende a docente.
Além disso, na visão de Cássia, não é possível imaginar um reforma desta magnitude sem investimentos. Segundo ela, não basta manter os jovens na escola, é preciso fazer com que estas horas se revertam em conhecimentos diversos, o que exige infraestrutura e pessoal.
Um dos exemplos é a flexibilização do currículo, com a divisão em cinco grandes áreas (ver box). Segundo Cássia, é preciso cuidado para que as escolas não se especializem em determinado itinerário de ensino, prejudicando assim os alunos que buscam outros caminhos de conhecimento. “É fato que muitas escolas não terão condições de se especializarem nas cinco áreas propostas, por conta da complexidade desse movimento. Então, o que acontece, o aluno se movimenta? Vai para outra escola? Para isso, é preciso infraestrutura. Essas questões precisam ser detalhadas”, salienta.
Outra questão é a abertura para que profissionais com “notório saber”, sem formação específica na área, lecionem nas escolas. “O MEC afirma que isso será passível somente para situações muito específicas e não para disciplinas como matemática ou português. E isso é interessante porque abre um leque de possibilidades. Entretanto, tudo depende de como a questão será organizada, não se pode deixar que equívocos ou más interpretações sejam colocados em prática”, destaca.
Ensino tecnicista seria um retrocesso, diz antropóloga
A divulgação do documento também trouxe a tona o debate sobre a importância de disciplinas de humanas na formação dos estudantes. Na versão do documento publicada no Diário Oficial, a obrigatoriedade das disciplinas de artes e educação física fica em aberto, dependendo agora das definições da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ainda em processo de elaboração.
Na avaliação da doutora em antropologia Maria Elisa Máximo, a não inclusão de disciplinas como filosofia, sociologia, educação física e artes direciona a educação para um modelo inteiramente tecnicista, a exemplo do que era no princípio da era industrial.
“(Nesta época) tinha-se em mente a formação de exércitos de trabalhadores acomodados à lógica do mundo do trabalho. Não interessava o pensamento. Com o passar dos anos, este modelo foi muito questionado. A diversidade cultural foi um grande influenciador destas abordagens mais progressistas, pela compreensão de que o modelo bancário não alcançava igualmente todas as pessoas e acabava desumanizando a educação”, explica a doutora em antropologia.
Conforme Maria Elisa, são estas áreas do conhecimento que desenvolvem a capacidade crítica e de reflexão sobre si e sobre o mundo. “Estudar filosofia, por exemplo, é uma oportunidade de compreender como a nossa sociedade produziu, organizou e transformou seus modos de produzir conhecimento. Já as artes, além de aguçar nossa sensibilidade, são uma linguagem que também integra a história das nossas realidades, da sociedade onde vivemos”, exemplifica.
Para a doutora em antropologia, mais do que focar na reorganização de conteúdos, a grande revolução da educação passa por uma revisão pedagógica. Segundo ela, no modelo de escola atual, o aluno é quase que um mero “receptor” de conteúdo, sem protagonismo. “Ele recebe tudo pronto: projetos pedagógicos, matrizes disciplinares, apostilas, planos de ensino, estratégias de avaliação. Ele dificilmente participa da construção disso tudo. Precisamos colocar os jovens em situações de aprendizagem que desenvolvam sua autonomia, sua liberdade de pensamento e de escolha, situações em que eles, os jovens, sejam protagonistas”, afirma.
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30 escolas no estado receberão ensino integral em 2017
Com a criação do “Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral”, instituído esta semana pelo MEC, os governos estaduais começam a se organizar efetivamente para a aplicação do novo modelo de ensino. Em Santa Catarina, 30 escolas farão parte de um projeto piloto para implementação do ensino integral, que poderá beneficiar até 13,5 mil alunos.
Pelo menos uma destas escolas deve ficar na região de Jaraguá do Sul, segundo a gerente de educação regional da Agência de Desenvolvimento Regional (ADR) de Jaraguá do Sul, Cristiana Ziehlsdorff. “Estamos estudando as opções, analisando se a estrutura é adequada”, afirma Cristiana. Por enquanto, pouco foi divulgado sobre o assunto. No total, 25 instituições públicas do Estado oferecem o ensino médio na microrregião.
O processo de implementação do novo modelo, que já existe na rede municipal, deverá acontecer de forma gradativa, e as escolas modelo servirão como base para uma avaliação detalhada do sistema. “Santa Catarina está bem consciente de que este não será um processo da noite para o dia. É um período de adaptação para todos”, destaca. Segundo ela, o prazo para a implementação será inicialmente de cinco anos.
“O ensino integral traz novas possibilidades, desde que seja muito bem estruturado. O diálogo (sobre o novo modelo) está acontecendo, temos espaço para ver o que funciona e o que deve ser adequado. Entretanto, aspectos como o corpo docente exclusivo e a necessidade de materiais podem vir a onerar o Estado. Fato é que sem investimentos, não há qualidade”, analisa Cristiana.
O programa do MEC estipula que as escolas selecionadas devem conter pelo menos 120 alunos e quatro turmas do 1º ano do ensino médio. Também é necessário ter estrutura física suficiente para abrigar todas as turmas. Hoje, 730 escolas oferecem o ensino médio pela rede estadual em Santa Catarina. Destas, 150 oferecem ensino integral e profissionalizante, o que representa 20,5% do total.
De acordo com o Plano Estadual de Educação, a meta é disponibilizar o ensino médio integral em pelo menos metade das escolas até 2024.