Venezuelanos contam as dificuldades e refletem sobre momento de crise no país

Castro conseguiu juntar dinheiro para custear passagens dele e da namorada para o Brasil | Foto Eduardo Montecino/OCP News

Por: Elissandro Sutil

25/01/2019 - 09:01

Durante dez dias, os teatros, salas e corredores da Scar vão pulsar arte para todos os cantos de Jaraguá do Sul. Mas os aprendizados que o Femusc oferece (Festival de Música de Santa Catarina) extrapolam o âmbito cultural.

Nesta edição, em especial, o palco será ponto de encontro para um casal de venezuelanos que, há um ano, vive separado por cerca de quatro mil quilômetros.

A distância entre Miguel Alex Castro, 28 anos, e Adriana Quintero, 25, é resultado do avanço da crise econômica, política e social que se instalou na Venezuela e que a cada dia ganha um novo e dramático capítulo.

O clima de guerra ganhou força na quarta-feira (23), quando o presidente da Assembleia Nacional e líder da oposição, Juan Guaidó, se declarou presidente interino do país, buscando tirar a legitimidade do governo de Nicolás Maduro.

No Femusc, são 13 venezuelanos, sendo que quatro continuam no país de origem, dois estão no Chile, um na Argentina e seis no Peru. Miguel Alex Castro é um dos músicos que se refugiou no Peru – enquanto Adriana segue na Venezuela.

Há um ano, ele trabalha como professor de piano no conservatório nacional de música. No país de origem, Castro morava na capital Caracas desde a adolescência e também trabalhava como instrutor.

Situação política na Venezuela é instável | Foto Carlos Garcia Rawlins/Reuters

A remuneração da atividade foi um dos principais fatores que motivaram a saída de Castro da Venezuela. Lá, o salário girava em torno de U$ 11 dólares por mês.

No Peru, ele está recebendo aproximadamente U$ 1.200 mensalmente. “No meu país, o salário para o que faço não era alto. Já teve muito investimento em música, mas hoje não está mais assim”, explica.

Na Venezuela foi criado um dos sistemas de ensino de música mais conhecidos no mundo, o El Sistema. O modelo é referência e já foi adotado em mais de 40 países.

Pianista envia dinheiro para familiares

Castro foi o primeiro da sua família a conseguir ir para o Peru. Com o dinheiro que recebe como professor, ele pagou as passagens para o pai, que há seis meses se mudou para Lima.

Na capital venezuelana ainda estão a mãe e mais quatro irmãos do músico. Além de mandar parte do salário para eles toda semana, Castro e o pai pretendem levar o restante da família para o Peru.

“A situação no meu país está muito difícil, não tem nem medicamentos, eu tenho que mandar isso também. É mais complicado porque é um governo ditatorial, então fica difícil para as pessoas civis mudarem o panorama, eles não têm forças. O governo tem controle sobre os meios de comunicação, jornais, rádios, canais de TV. A principal forma de acesso é a internet”, relata.

Sobre o presidente interino, Castro avalia que o fato é uma decisão para o país e uma grande oportunidade de tirar Maduro do poder. “Acho que vamos caminhar para um novo processo democrático, que vai dar suporte para as pessoas”, acredita.

Castro quer voltar para o país de origem

Responder se gostaria de voltar ou não para a Venezuela não foi uma tarefa fácil para o pianista. O desejo é claro, ele quer retornar ao país de origem, mas a emoção ao refletir sobre a situação em que se encontram seus familiares e amigos pesou para o músico.

“Eu realmente quero voltar para Caracas porque a cidade e o país tem um movimento musical muito bom, o El Sistema. Existem inúmeras oportunidades e orquestras profissionais. Mas essa era a realidade há uns cinco anos, gosto do que a cidade era antes. Atualmente são muitos problemas”, aponta.

Castro começou a tocar piano aos 9 anos de idade, apesar de ter iniciado no El Sistema pela flauta, aos 8 anos. Esta é a primeira vez que ele está no Femusc.

Para o pianista, o festival é uma ótima oportunidade para aprender mais sobre a música e cultura brasileira.

“É um grande momento, que trazer benefícios para minha vida. Com certeza, vou dar a melhor parte de mim aqui”, garante.

Adriana continua na Venezuela

Adriana Quintero, 25 anos, é uma das alunas que ainda moram na Venezuela. A pianista comenta que a primeira participação no Femusc está sendo possível graças à ajuda do namorado Miguel Alex Castro.

“A crise econômica é grande. O governo tem dado uma ajuda que, ao meu ver, não é suficiente. É impossível sobreviver ganhando em bolívar (moeda oficial)”, observa. Adriana mora com o pai e a mãe em Caracas. Na família dela, todos trabalham. Ela atua como pianista e tradutora na internet.

Pela primeira vez no Femusc, pianistas se dizem encantados com estrutura do festival | Foto Eduardo Montecino

“A minha remuneração é em dólar, por isso consigo ter mais lucro e ficar mais estável. Se dependesse apenas do trabalho com o piano, que recebo em bolívar, não seria possível”, avalia.

Adriana comenta que a situação econômica só está mais amena para quem recebe em dólar ou recebe ajuda de familiares que conseguiram sair da Venezuela e enviam dinheiro para quem ficou no país. Como o caso de seus primos e tios.

“As pessoas que não têm essa oportunidade estão passando muito mal. Deixam de comer para dar alimentos aos filhos ou fazem apenas uma refeição por dia”, conta.

A pianista acredita que a crise humanitária é uma consequência de um processo de anos no país. Para ela, a questão se agravou quando as empresas do setor privado começaram a quebrar por conta das medidas ditatoriais do governo de Maduro.

A nomeação do presidente interino, segundo ela, é uma esperança para os venezuelanos.

“É uma situação muito difícil, o governo tem muito poder e manipula as pessoas. As eleições que reelegeram Maduro foram ilegítimas. Ele criou uma nova assembleia constituinte que não fosse de oposição para apoiar sua reeleição”, relata.

Adriana comenta sobre a pressão externa que o governo está sofrendo, considerando que muitos líderes internacionais já reconhecem Juan Guaidó como presidente, incluindo Jair Bolsonaro.

“Estão acontecendo muitos protestos nas ruas, mas o governo de Maduro continua ali, com as armas, poder e controle da população”, declara.

De acordo com a pianista, a maior parte dos venezuelanos é contra Nicolás Maduro.

“O que acontece é que muitos têm medo, justamente por essa dependência que se criou do governo. Se você se posiciona contra, você não come, perde o emprego, matam tua família. As pessoas mais pobres estão chegando ao ponto de roubar para ter o que comer”, revela Adriana.

Namoro à distância

Adriana e Miguel se conheceram por causa do piano há muitos anos e antes de engatar um namoro, eram amigos. Desde que ele foi para o Peru, o casal mantém o contato diário pela internet, com aplicativos como WhatsApp e Skype.

“Ele se mudou para ajudar a família. É difícil, mas sabemos que estamos trabalhando por um projeto em comum e esta situação atual é momentânea”, diz Adriana.

O acesso à internet, segundo ela, é cada vez mais precário, mesmo morando na capital do país. Adriana planeja sair da Venezuela ainda neste ano, depois de terminar os estudos.

A pianista ainda não sabe se vai conseguir levar os pais junto por conta da idade avançada deles e da dificuldade em deixar a Venezuela.

A primeira participação no Femusc está sendo um verdadeiro alívio para a jovem, que ressalta estar encantada com a estrutura do festival, do Centro Cultural da Scar e da cidade.

“Me encanta estar em um ambiente artístico. Ultimamente estou frustrada porque só consigo tocar lá, e não me expressar como artista”, completa.

Crise se agrava na Venezuela

A Venezuela vive uma complexa crise política e econômica, que se arrasta por mais de quatro anos. No centro do turbilhão está o governo de Nicolás Maduro, eleito pela primeira vez em abril de 2013 e reeleito em 2018 por meio das eleições presidenciais ocorridas em maio.

No último dia 10, Maduro, do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), tomou posse para um novo mandato, e tem como desafio maior pacificar o país, convulsionado pelos protestos oposicionistas e por uma brutal guerra econômica, que gera desabastecimento de alimentos e produtos básicos.

Nesta semana, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela e líder da oposição, Juan Guaidó, nomeou-se como presidente interino do país e foi reconhecido pelos governos do Brasil e dos Estados Unidos, entre outros.

Herdeiro político do ex-presidente Hugo Chávez, Maduro chegou ao poder em meio à comoção pela morte do líder que colocou o país petroleiro no mapa geopolítico mundial.

A ausência de Chávez, no entanto, fortaleceu a oposição, que já executou diversas tentativas de tirá-lo do poder por meio de referendo ou promovendo protestos constantes, que se configuram como tentativas de golpes.

Protestos clamando por novo processo democrático explodem pelo país | Foto Carlos Garcia Rawlins/Reuters

A economia do país chegou a este ponto por uma série de políticas adotadas que, no longo prazo, não se sustentaram e esgotaram o modelo econômico.

O fator mais evidente é como o país se tornou extremamente dependente das exportações de petróleo e foi prejudicado quando o preço do barril no mercado internacional começou a cair.

A alta dependência da importação e a falta de orçamento para isso está levando a uma escassez de produtos básicos nas prateleiras dos supermercados, farmácias e hospitais.

Os venezuelanos enfrentam grandes filas em mercados e farmácias, em alguns casos chegam antes do amanhecer, para conseguir fazer compras. Para piorar, os produtos estão mais caros.

A incidência de saques e de violência também tem aumentado. Além disso, moradores dos dez estados mais populosos e industrializados enfrentam apagões diários de quatro horas. Os funcionários públicos têm folga três dias por semana, também para enfrentar a crise na energia.

 

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