OCP nos bairros: Morro Boa Vista preserva história e cultura da população negra

Comunidade na subida do Morro Boa Vista cresceu nos últimos anos e movimento aumenta com turismo | Foto Eduardo Montecino/OCP

Por: Elissandro Sutil

07/06/2018 - 06:06 - Atualizada em: 17/09/2019 - 15:21

Da janela de casa, a vista é privilegiada. Em meio à mata e a vizinhos conhecidos de outros carnavais, os moradores do Morro Boa Vista conseguem ter uma visão generosa de Jaraguá do Sul e, em alguns casos, a vista alcança até mesmo os municípios da região.

E se antes o visual e as belezas do morro eram praticamente exclusivos dos moradores e daqueles que se aventuravam nos esportes radicais, hoje o fluxo de turistas é muito mais intenso.

Parte desse interesse surgiu após a construção da Chiesetta Alpina que, em 2016, teve pelo menos 20 mil visitantes que assinaram os livros de presença da igreja.

O Monumento à Fé do Imigrante é hoje, um dos locais mais visitados quando o assunto é turismo religioso em Santa Catarina.

Chiesetta Alpina virou uma das atrações turísticas de Santa Catarina | Foto Eduardo Montecino/OCP

Toda essa visibilidade mudou a rotina dos moradores do bairro que possui uma forte história ligada à cultura negra, conforme explica a presidente da associação de moradores do bairro, Mariana Pires. E, para ela, essa história é motivo de orgulho.

“É um local que eu me apaixono muito e sempre pela questão cultural e histórica pautada na história dos negros”, diz.

Ela explica que os moradores têm um senso muito grande de pertencimento ao local e de comunidade, graças à manutenção das residências que, em muitos casos, passaram de geração a geração.

“Existem muitas famílias que são filhos dos filhos, dos filhos, dos filhos… É muito importante preservar essa história, porque no morro tem muito da história de Jaraguá”, conta.

Mariana sente orgulho da história do Morro Boa Vista, que já foi chamado, em outros tempos, e de maneira pejorativa, de Morro da África.

Isso aconteceu porque a comunidade negra que chegou a Jaraguá do Sul se instalou com intensidade no local. Porém, à época, não havia qualquer política pública de ocupação do solo ou mesmo de assistência básica às famílias que começaram a habitar o local.

Pequenas conquistas e munição para cobranças políticas

Cenário que mudou bastante de lá até aqui, especialmente na última década, conforme conta Mariana. Segundo a presidente da associação, nos últimos dez anos houve um crescimento bastante acentuado tanto da população quanto da estrutura oferecida à comunidade.

“Em muito pouco tempo, nos últimos dez anos, o morro deu um salto muito grande. É um bairro que cresceu muito, mas ainda tem aquela coisa de que todos os vizinhos se conhecem, por mais que ele cresça, mantém esse clima de bairro pequeno. E, com certeza, os avanços foram muitos, lembro que a creche era uma briga e o posto de saúde era uma utopia e hoje, a gente tem”, destaca.

Para Mariana, a comunidade consegue enxergar o ônus e o bônus do crescimento e da visibilidade que o Morro ganhou com o turismo.

“É um lugar que está se valorizando muito nos últimos tempos. A comunidade de certa forma vê esse aumento do fluxo turístico como um ônus, mas também há o bônus, porque acabamos ganhando mais munição para cobrar ações e políticas públicas”, ressalta.

A presidente destaca ainda que, embora o desenvolvimento seja positivo, é necessário ter cuidado e atenção para que o Morro se mantenha preservado. “É um pedacinho de mata no meio do concreto que precisa ser preservado”, completa.

Moradores sofrem com falta de serviços

Nem o friozinho e o clima cinza dessa semana amedrontaram João Lucas, que prestes a fazer três anos está no auge da energia. Ativo, o garotinho passou a mão em um chapéu e correu pelo gramado, hora abrindo torneiras, hora se pendurando no portão de madeira que dá acesso ao terreno por onde a mãe, Geisa Pacheco da Cruz, de 29 anos, corria atrás do garotinho. “Ele não para, está quase fazendo três e está aí, se molhando todo”, conta.

O sossego e a tranquilidade do início da semana permitem que João Lucas corra pelo quintal, mas nem sempre é assim. Aos fins de semana e feriados, o fluxo de carros, pedestres e ciclistas é intenso na rua em que moram, no Morro Boa Vista.

Tão intenso que Geisa desconfia do sumiço da gatinha, que não aparece há semanas. “Ela vivia aqui, solta, e no fim de semana passa muita gente, acho que alguém levou”, lamenta.

A família vive na entrada da Fazenda Spezia, onde a altitude já é bastante considerável e, para a doméstica, esse pode ser um dos motivos pelo qual alguns serviços não são oferecidos a sua família, como coleta de lixo e transporte escolar.

“Agora até melhorou por aqui, por conta do concreto, porque antes era tudo barro, mas ainda faltam algumas coisas, como condução para as crianças irem para a escola”, diz. “Além disso, os Correios não passam e nem coleta de lixo. Aqui, a gente acumula dois, três sacos grandes de lixo e depois leva lá pra baixo”, conta.

Ônibus de transporte coletivo também não chega por lá, mas essa nem é a maior preocupação de Geisa, que gostaria mesmo de ter transporte para os filhos freqüentarem a escola.

Ela explica que o marido leva os outros dois filhos, mas eles estudam em horários e escolas diferentes, o que acaba exigindo uma ginástica da família.

“Meu marido leva, mas eles estudam em horários diferentes, em escolas diferentes. Ele só consegue porque está desempregado e adapta os bicos que faz aos horários das crianças”, afirma.

Apesar disso, a doméstica que mora há quatro anos no Morro Boa Vista afirma que não troca o local por outro bairro onde, provavelmente, João Lucas não teria a mesma liberdade. “Gosto muito daqui, do sossego, da tranquilidade. Graças a Deus nunca ninguém mexeu aqui ou algo do tipo”, ressalta.

A Prefeitura informou, por meio de nota, que “a legislação sobre o transporte escolar prevê somente transporte para as famílias que moram a mais de três quilômetros de distância da escola, que não é o caso das famílias que moram naquela região”.

Unidade de saúde sem atendimento médico há dois meses

“Quando tem médico, dá pra dar nota dez”. Usuária do SUS (Sistema Único de Saúde), a aposentada Berberina Bastos de Moraes, 64 anos, é só elogios ao atendimento da unidade básica de saúde do bairro. Segundo ela, o atendimento é cordial, de qualidade e muito ágil, porém há dois meses a comunidade enfrenta um problema: a falta de médico.

Segundo a aposentada, a médica responsável pelo atendimento clínico no Morro Boa Vista passou por um procedimento cirúrgico que demanda afastamento do trabalho. O problema é que ao invés de haver reorganização do quadro e substituir a profissional durante esse período de afastamento, a unidade segue sem atendimento médico. E isso já está prestes a completar dois meses.

De acordo com Ilmar Zabel, o atendimento da unidade é exemplar, mas os moradores ficam desassistidos neste período. “A médica é muito boa, eu já fui atendido com muita rapidez e qualidade, mas agora o pessoal fica sem médico porque não veio ninguém enquanto ela está fora”, afirma.

A Prefeitura foi questionada a respeito, mas não se manifestou até o fechamento da reportagem.

Iluminação pública carece de manutenção

Um dos pontos de referência do bairro, o posto de saúde fica no breu quando a noite cai. Isso porque a iluminação dos postes ao seu entorno não existe, afirma o aposentado Ilmar Zabel. Ele conta que há semanas as lâmpadas queimaram e, apesar das ligações insistentes para que a manutenção fosse realizada, até o momento, o local segue no escuro. “Acho que todo mundo já ligou lá, até o pessoal do posto, mas ainda está aí, queimada eu acho”, diz.

Além desse ponto, a presidente da associação de moradores do bairro, Mariana Pires, afirma que existem outras “escuridões” no morro. Ela conta que, especialmente em locais nos quais não há residências de nenhum lado da via, a manutenção se arrasta sem solução.

“Tem alguns locais que demoram muito tempo para trocar e isso é muito perigoso, inclusive já houve relatos de tentativas de estupro nestes espaços”, enfatiza.

A Prefeitura alega que o serviço de substituição de lâmpadas da iluminação pública é prestado por uma empresa contratada e as solicitações devem ser atendidas em até 48 horas.

“A empresa mantém um serviço de rondas noturnas pela cidade para identificar problemas no sistema, mas, a população tem um canal direto para solicitar os reparos necessários”, informou por meio de nota.

Área de lazer implantada não atende a necessidades | Foto Eduardo Montecino/OCP

Sem área de lazer

Do lado da creche, o pequeno parque infantil é a opção para os moradores que desejam um momento de lazer com os filhos. Mas é só. E os moradores estão sentindo falta de um espaço de lazer e prática de atividades físicas, como uma academia ao ar livre.

Para o aposentado Evanil Pereira Borges, de 72 anos, o espaço faz muita falta. Ele e a companheira, Berberina Bastos de Moraes, de 64, sofrem com artrose nos joelhos e os exercícios físicos moderados são indicados pelos médicos, porém, não há espaço para isso no bairro. “Poderia ter uma academia também, assim poderíamos fazer algum exercício físico. Era pra ter saído, mas até agora nada”, diz.

Ele conta que descer o morro para se exercitar não é uma opção, a não ser que o trajeto seja feito de carro. “Eu e ela temos problema nos joelhos e a descida é justamente a pior parte para nós. Não tem como”, destaca.

Segundo a presidente da associação de moradores, Mariana Pires, já houve promessa para esse espaço, mas a única coisa que aconteceu foi a instalação de um pequeno parque.

A prefeitura foi questionada a respeito, mas não se manifestou até o fechamento da reportagem.

Morro Boa Vista sem Correios

Se o hábito de se comunicar por cartas ainda fosse mantido com frequência, os moradores do Morro do Boa Vista teriam um grande problema. Aliás, eles já têm um problema: não há entrega de correspondência no bairro.

E para Berberina Bastos de Moraes, essa é hoje a principal demanda dos moradores. “Para nós, o que falta é o Correio. Não entregam correspondência por aqui”, reclama. Segundo a presidente da associação de moradores do bairro, Mariana Pires, a associação em parceria com a Ujam (União Jaraguaense das Associações de Moradores) está estudando uma solução paliativa: reunir as correspondências em um único ponto.

Ela conta que a “caixa postal” improvisada minimizaria os impactos da falta de serviço, embora esteja longe de ser a solução ideal. “Não é a solução correta, mas os Correios alegam que há lugares muito difíceis de chegar. Agora estamos estudando um local para colocar essa ‘caixinha’”, explica.

Segundo a Secretaria de Planejamento e Urbanismo, os Correios são obrigados a realizar a entrega das correspondências em ruas ou servidões oficiais.

“No entanto, se a rua for considerada clandestina ou irregular, não estando contemplada no mapeamento do município, não existe maneira de obrigar os Correios a prestarem o serviço”, finaliza.

 

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