Povo Guarani está prestes a perder território com duplicação

Por: Elissandro Sutil

22/04/2018 - 20:04 - Atualizada em: 24/04/2018 - 13:31

Para nós, não existe Paraguai, Argentina, Brasil. Para nós, o território é o mesmo e só é dividido pelo rio. O rio é o coração de tudo, o coração do mundo”. Território.

Esta é uma questão delicada e que machuca o povo guarani. Assim como disse o cacique Ronaldo Costa, não existe divisão, não existe, para o povo indígena, o “território deles” e o “nosso território”.

A afirmação do cacique vem para reforçar a luta do indígena que vem perdendo suas terras, cada dia com mais velocidade. O cacique ressalta que “o Brasil era nosso, nós somos daqui e sofremos muito porque o pessoal fala que somos dos outros países, mas nós somos daqui, nativos daqui”.

A Aldeia Tiaraju é apenas mais uma que sofre constantemente com a perda de terras. Situada às margens da BR-280, ela vive, mais uma vez, a iminência de uma redução, intensificada com as obras de duplicação da rodovia. O território guarani tem uma área de cerca de três hectares e deve diminuir.

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Para o cacique, os não índios não entendem que o caminho de “migração” é inverso ao anunciado pela sociedade, que insiste em afirmar que “os índios estão chegando às cidades”.

“A terra que a gente tinha já ficou pequena e fica cada dia menor. Não é o guarani que está chegando na cidade, é o não índio que está chegando nas aldeias. A gente não precisava ficar com as coisas da cidade, nós temos tudo aqui, água, comida, tudo. Mas eles estão destruindo a mata e chegando nas aldeias”, ressalta.

E, com a perda de território e a aproximação cada vez maior e mais intensa, a população indígena também tem sofrido os impactos diretos, tanto na preservação da sua terra, como na própria sobrevivência.

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2010, a população indígena em Santa Catarina chegava a 16.041 pessoas, divididas entre aqueles que vivem em Terras Indígenas (TI) e os que vivem nos meios urbanos.

Em Joinville, por exemplo, segundo o IBGE, viviam 523 índios, mas a cidade não possui Terras Indígenas.

Em 2010, a população indígena em Santa Catarina chegava a 16.041 pessoas | Foto Eduardo Montecino/OCP

A estimativa do IBGE é de que, à época do Censo, 10.369 pessoas vivessem em TI. Estas terras estão divididas entre 22 municípios catarinenses.

Entre eles, os mais próximos são Araquari, Balneário Barra do Sul e São Francisco do Sul. Em Araquari, eram, em 2010, 213 pessoas. Uma delas é o cacique Ronaldo, que lidera a Aldeia Tiaraju.

“O governo não vê, ele pensa que a terra é toda do governo, mas não é. O nosso criador fez o mundo pra gente viver, guaranis, outras etnias, os brancos também. O guarani quer a mata e o rio para preservar, para preservar o nosso costume. Os guaranis são guardiões de todas as etnias e fazem oração para todo mundo. A população não indígena não entende isso. Nós queremos a terra para guardar a mata, guardar a terra. Nossa função é cuidar do rio e da mata”, conta.

Mas, para guardar a mata e a terra, o povo indígena trava uma luta há séculos pelo direito a elas. E, em Araquari, o que para muitos significa desenvolvimento, para o povo indígena representa mais uma derrota.

A duplicação da BR-280 passa pelo território indígena e a desapropriação passa também pela terra e pela mata que os guaranis tanto lutam para preservar.

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Embora o governo esteja disposto a indenizar o povo guarani, para Ronaldo, isso não é suficiente e o motivo é simples: não se trata de dinheiro.

“Como a gente vai vender a terra que não é nossa? O criador não vendeu pra ninguém, ele criou pra gente andar, cuidar, pra isso que a terra foi criada. Hoje não somos massacrados fisicamente como antes, mas na papelada, eles estão tirando o que é nosso e nós só queremos continuar cuidando, caçando, pescando”, diz.

Assim como Ronaldo, o índio Darci da Silva também fala sobre a violência causada não por armas, mas por canetas. Lembrando o massacre ocorrido quando da chegada dos colonizadores, o índio ressalta que o povo guarani já estava no território que para os portugueses foi “descoberto”.

“Nesse período eles chegaram, mataram, queimaram. Hoje não acontece assim a violência, mas agora os políticos, os governantes, estão violando o nosso direito, então é isso que enfrentamos até hoje. Eles querem matar os índios tirando nossa terra, desmatando nossas florestas”, enfatiza.

Futuro de luta e preservação

O índio ressalta ainda que a desapropriação é mais uma violação em meio a tantas outras cometidas contra o povo indígena. E, para Darci, a indenização está longe de ser uma solução.

“É claro que a indenização não é suficiente pra gente porque a terra que a gente estraga, nada paga. A terra que estamos vivendo faz parte do nosso corpo, o rio que está correndo é o nosso sangue que corre. Por isso, a gente não pode estragar a terra, não pode matar a natureza, porque ela faz parte do nosso corpo”, diz o cacique.

A relação do povo indígena com a terra e a natureza é violentada diretamente a cada desapropriação, a cada desmatamento e a cada retirada de território.

Para o vice-cacique Gabriel Martins Pires, a luta é milenar e continuará sendo, porque os impactos desta exploração são sentidos todos os dias.

Foto Eduardo Montecino/OCP

“A gente está em pé e não vai voltar atrás, vamos continuar lutando. A natureza é o nosso corpo, é a nossa raiz e eles estão eliminando ela. Ensinamos todos os dias nossas crianças a continuar lutando pelo que é nosso”, ressalta.

Empoderamento feminino na comunidade

Ao chegar na Tiaraju, não é incomum avistar as mulheres indígenas espalhadas em inúmeras tarefas, desde o cuidado com os pequenos, até o preparo de ervas e alimentos. A força feminina é exaltada por ela, que teve a coragem de cursar uma faculdade mesmo sabendo de toda a carga de preconceito e choque cultural que pesaria sobre seus ombros.

Para Cecília Brizola, o maior incentivo e também a maior missão ao se tornar uma educadora de papel passado é servir de exemplo e, mais do que isso, dar aquele empurrão para que as mulheres indígenas tomem espaços e lutem.

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“Quando eu parei pra pensar o porquê queria fazer faculdade, anos atrás, pensei e penso ainda nas mulheres. Eu quero ajudar mais porque na nossa cultura, eu não posso falar muito sobre os homens, mas há algumas coisas que eu quero falar e se a gente puder, a gente fala. Eu sempre quis e continua sendo um desejo ajudar as mulheres a também tentar”, diz.

“Eu passei dificuldade para terminar a faculdade? Muita. Mas eu quero mostrar isso para os alunos, para as meninas, mostrar que não é fácil, que a gente sofre muito e enfrenta muita coisa, mas mesmo assim tem que tentar, tem que fazer isso porque a gente precisa”, enfatiza.

Para a professora Cecília Brizola, o maior incentivo e também a maior missão ao se tornar uma educadora de papel passado é servir de exemplo | Foto Eduardo Montecino/OCP

Formada desde 2015, hoje ela atua como professora e coordenadora da unidade escolar da aldeia. Embora tenha continuado no local e esse seja o seu desejo, ela não se limita e quer conseguir ajudar a todos, dentro e fora da sua comunidade.

“Eu penso que se as mulheres precisam de ajuda, da minha ajuda, podem vir, pode me chamar, pode me levar daqui, porque em qualquer lugar que eu puder ajudar, eu vou. Eu vou mesmo no meio de vocês, não índios, se precisar de mim lá, eu vou”, enfatiza.

Cecília atua com foco no empoderamento das mulheres indígenas Foto Eduardo Montecino/OCP

Focada na missão de empoderar as mulheres indígenas, Cecília reconhece as lideranças, como o cacique, mas também ressalta que as mulheres têm conhecimento e autonomia para falar de sua cultura e sua história.

“Não é só o cacique que pode falar. Nós também podemos ajudar e falar sobre a nossa história, a nossa cultura. É assim que eu penso”, afirma.

Para ela, o dever é mostrar isso aos alunos, às mulheres, falar da luta do povo indígena e não deixar que nada seja esquecido. E a missão maior de Cecília é com as mulheres. “Elas podem fazer o que quiser, ser o que quiser e é muito importante que saibam disso, a gente fala muito isso”, ressalta.

Futuro de luta e preservação

Quando o vice-cacique da Aldeia Tiaraju, Gabriel Martins Pires, pensa no futuro, não vê um caminho próspero e otimista.

Para a filha de três anos, ele vislumbra uma vida melhor, mas também sabe que ela terá que lutar muito por isso. Quando os pensamentos começam a ficar negativos, ele confessa que procura os mais velhos para aconselhamento.

“Eu acho que os não índios vão aumentar mais e, se a gente não lutar pra sobreviver, acho que a gente…” – ele interrompe a frase porque não quer pensar em novos genocídios. Quando a cabeça o leva para esse caminho, logo procura auxílio. “Quando começo a pensar isso, procuro o pajé e ele diz que não, que não pode pensar assim”, conta.

A luta pela sobrevivência é real e essa realidade é repassada diariamente aos mais jovens, mas a esperança de uma vida melhor também faz parte do dia a dia, conta a professora e coordenadora Cecília Brizola.

Ela enxerga o esforço dos caciques e lideranças, mas também sabe que é preciso preparar os mais jovens para continuar a luta e preservação da cultura indígena.

Professora garante que influencia da cultura branca não enfraquece ligação dos guaranis com suas raízes | Foto Eduardo Montecino/OCP

“Os caciques estão fazendo o melhor que podem, e nosso papel é passar, preparar as crianças para lutar, para conseguir uma vida melhor do que a que a gente tem hoje porque não estamos conseguindo muita coisa, mas temos esperanças”, analisa.

Cecília garante que a comunidade sabe a importância de preservar a terra, a cultura e a língua e a interferência da cultura branca não é capaz de enfraquecer a ligação dos guaranis com as suas raízes.

“Não se esquece dos remédios, da comida, da língua, da nossa cultura. É por isso que até hoje a gente fala o guarani, não perdemos a nossa fala e a nossa cultura. A gente pode ter tudo perto, mas a nossa cultura nunca vai sair. A gente nunca perde a esperança”, ressalta.

E é nos jovens que Gabriel também deposita a sua esperança de manter a cultura indígena. “A gente fala para o jovem, para não esquecer a nossa cultura, para levar adiante porque eles, depois de nós, podem levar adiante e é isso que a gente quer. É isso que sempre fizemos, passando de geração em geração”, finaliza.

*Reportagem de Adrieli Evarini para o jornal O Correio do Povo