“Vocês são de onde?”, perguntei. “Nós somos de onde? Nós somos daqui”, respondeu ele. Ronaldo Costa é indígena da etnia guarani. Ele, seus seis filhos e mais 19 famílias vivem na aldeia guarani Tiaraju, em Araquari, às margens da BR 280, no sentido Guaramirim à BR 101. A resposta de Ronaldo, cacique da aldeia, à minha primeira pergunta já deixou transparecer o pouco conhecimento que eu, jornalista formada-com-diploma, possuo sobre a cultura guarani. Mas a generosidade de Ronaldo, um dos traços dessa cultura, logo ensina que na verdade temos muito a aprender com quem já está aqui “há muitos tempos”, como diria ele.
O entrevistado: Ronaldo, cacique da aldeia guarani Tiaraju. Foto: Verônica Lemus Orellana
“O central do mundo que começou fazer a Terra, é de lá que começou tudo e começou o Brasil inteiro, é lá no Paraguai”, contou o cacique, em seu português ainda difícil (muitos dos indígenas da aldeia ainda não adotaram o idioma). Ele explicou que o “central do mundo” é localizado na região denominada pelo homem branco como Paraguai e Argentina. Mas para o guarani, é tudo uma coisa só, não há divisão. De lá, o guarani caminhou, chegando há muito mais de 500 anos atrás ao Paraná e a São Paulo, passando por Santa Catarina, numa espécie de corredor de acesso.
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“(O território) começa pequeno, vai crescendo em volta até ficar uma bola bem grande, só que na verdade foi divido quase pelo meio, e aqui é Brasil, pra lá já é Paraguai e Argentina, mas na verdade é uma só, não tem divisão. É o pessoal que chegou no Brasil que dividiu tudo isso, só que quem fez tudo isso nem ficou, mas ficou a marcação”, disse Ronaldo.
Área da aldeia Tiaraju, próxima ao limite entre Guaramirim e Araquari - clique na imagem para acesso via Google Maps
Artesanato não era para vender
Antigamente, o guarani conseguia plantar e caçar o que precisava para se alimentar. Também colhia da natureza o material para a construção da aldeia. Mas hoje, o cenário é bastante diferente. “E agora, nós temos quase mais nada de mata, se olhar pra um lado é plantação de arroz, pra outro é eucalipto. O lugar que eu posso levar a criança (pra aprender a plantar, a caçar) não tem. Onde que vou mostrar armadilha pra ele pegar o bicho, como que vou falar pro meu filho ‘ah, faz assim pra pegar o peixe’, cadê o rio? Não tem”, descreveu Ronaldo.
Artesanato guarani feito na aldeia Tiaraju, a madeira é colhida no próprio local. Foto: Verônica Lemus Orellana
O artesanato, que antigamente era feito para auxiliar nas tarefas do guarani, hoje é um dos modos de subsistência da aldeia. A zarabatana e o arco e flecha eram feitos para a caça e para ensinar os mais jovens a caçar. O balaio grande, para carregar a mandioca, batata, peixe e até mesmo as crianças. O cacique explicou que as crianças guarani aprendem tudo com os mais velhos, por meio da contação de histórias, mas principalmente por meio da prática.
Os bichinhos de madeira costumam levar dois dias para serem feitos. Foto: Pena Filho
“Antigamente tinha bastante mato e nosso antepassado não precisava ir pra cidade, tinha tudo na mata, e mesmo assim fazia muito trabalho de artesanato, o arco, a zarabatana, mas fazia só pra caça, pra criança aprender, mas não era pra vender”, reforçou o cacique. Os guaranis produzem também colares, pulseiras, balaios pequenos e grandes, chocalhos, cachimbos e animais de madeira. “Cada família faz o seu trabalho, mas as crianças são só algumas que fazem, não todas”, comentou Ronaldo.
A aldeia conta com escola e professores para propagação tanto da cultura Guarani quanto para a educação tradicional das crianças. Foto: Pena Filho
Em Jaraguá do Sul
Hoje, o guarani precisa deixar sua aldeia para ir até a cidade. Em Jaraguá do Sul, mulheres indígenas acompanhadas de seus filhos costumam vender o artesanato guarani pela região do Centro, estando mais presentes no Calçadão e na Avenida Getúlio Vargas, próximo ao shopping. Marciana Brizola, irmã de Ronaldo, é uma dessas mulheres. Ela e mais os três filhos pequenos costumam ir a Jaraguá nos sábados, e às vezes também às sextas ou segundas-feiras.
Ronaldo contou que muitas pessoas que desconhecem a cultura e a história dos guaranis criticam a presença dos indígenas nas cidades. “Muita gente que não conhece diz ‘olha os índios vindo pedir esmola’, sempre acontece isso", desabafou. Como Ronaldo explicou, por tradição as crianças guarani acompanham os mais velhos nas atividades do dia a dia.
Crianças guarani aprendem observando os pais e os mais velhos. Foto: Verônica Lemus Orellana.
“A mãe antigamente pegava o filho e já levava pra roça. Não é que vai mandar plantar. O filho vai aprender o que a mãe tá fazendo, como planta, como tira o milho... E quando ele crescer já vai saber fazer. No trabalho do artesanato também é assim, só que muita gente diz que tá mandando filho pra fazer o trabalho, só que não é isso”, reiterou o cacique.
Além de Jaraguá do Sul, os guaranis da aldeia do Piraí também vão a cidades como Joinville, Itajaí e Balneário Camboriú. Em Balneário, Ronaldo contou que a Prefeitura da cidade ajuda os indígenas com hospedagem, café da manhã, almoço e janta. Em dezembro do ano passado, a Prefeitura regulamentou a presença indígena na cidade, estabelecendo regras e locais definidos para a venda dos artesanatos durante o verão.
A regulamentação foi resultado do trabalho da Comissão Presença Indígena, reunindo representantes da Funai e lideranças indígenas, que atuou durante todo o ano de 2015 discutindo políticas públicas para as etnias presentes na cidade, que incluem tribos Kaingang e Pataxó.
Expectativa para o futuro
Ronaldo disse que dificilmente há ajuda em Jaraguá do Sul para a venda do artesanato, que é vendido sobre mantas colocadas diretamente no chão, sem proteção contra chuva e com pouca visualização. Para o cacique, a divulgação e a disponibilização de um espaço adequado para a comercialização do artesanato já contribuiriam muito para aumentar as vendas.
Artigos na calçada dão pouca visibilidade e desvalorizam o produto, como também geram preconceito e alimentam estereótipos. Foto: Verônica Lemus Orellana
O cacique também contou que possui ideias de projetos para a aldeia, principalmente na área do turismo e também projetos educativos. Ronaldo imagina poder oferecer à população estadia na aldeia e visitações, para vivências, trilhas e palestras a respeito da cultura guarani. A aldeia tem um coral formado pelas crianças que o cacique acredita que também pode ser divulgado. A venda de alimentos produzidos pelos guaranis na aldeia – como milho, mandioca e melancia - é outra aposta de Ronaldo, que vê na Internet uma oportunidade para a divulgação para o que a aldeia tem a oferecer.
Placa na entrada da aldeira Tiaraju, que é aberta para visitação. Foto: Verônica Lemus Orellana
“Nós estamos na luta não é de dois, três meses pra cá, é mais de 500 anos de luta”, desabafou Ronaldo. A aldeia recebe ajuda de grupos de permacultura, de advogados, e também de doações de roupas e alimentos. A Funai possui uma sede em Joinville, que também atende a aldeia de Araquari.
Cacique Ronaldo defronte a Casa de Reza da aldeia, edificação de pau a pique coberta por sapê onde a tribo realiza seus cultos. Foto: Verônica Lemus Orellana
O cacique sabe que não é de um dia para o outro que a situação da aldeia irá melhorar, mas ele tem esperança no futuro. “O ser humano tem que apoiar um ao outro. Quando precisa de alguma coisa tem que pensar ‘não, vamos por esse caminho, que a gente vai conseguir... se for por ali vai ser difícil’, ou talvez, mesmo no caminho difícil, pelo menos juntos a gente consegue também. Pra isso que estamos no mundo, pra ajudar o outro, apoiar o outro”.
Aberta para visitas
Ronaldo destacou que a aldeia está aberta para visitas, independente de dia ou horário. Interessados precisam apenas se dirigir ao local, e procurar preferencialmente por ele para que sejam atendidos.
Clique aqui para conferir no Google Maps a localização da aldeia, que fica às margens da BR 280 na localidade do Piraí, próxima à divisa entre Guaramirim e Araquari.