A pedagoga Clery Dreher, pós-graduada pelo IFSC Bilíngue e com 30 anos de experiência na Língua Brasileira de Sinais (Libras), iniciou neste ano um trabalho que vem transformando a vida escolar de uma adolescente em Jaraguá do Sul. Contratada como professora bilíngue na Escola Estadual Duarte Magalhães, ela assumiu a missão de acompanhar Suane, de 16 anos, surda de nascença, que estava sem intérprete desde o início do ano letivo.
Segundo Clery, embora muitas pessoas saibam Libras, poucas têm formação específica para atuar como tradutoras e intérpretes. “Para ser intérprete de Libras tem que ter, no mínimo, cinco anos de conhecimento da língua e também conhecer as técnicas de tradução e interpretação. O trabalho de tradução é muito complexo. Ele exige raciocínio rápido para fazer a tradução simultânea, técnicas de tradução, interpretação e uso de classificadores próprios da língua de sinais. O ato de escovar os dentes, por exemplo, é um classificador”, explica.
O despertar para a leitura
Ao chegar à escola, Clery percebeu que Suane não dominava a Libras nem a língua portuguesa escrita. O desafio, então, era reconstruir a base de linguagem da adolescente. “A língua natural do surdo é a Libras. Para aprender o português escrito, antes é preciso aprender bem a língua dos sinais”, diz a professora.
A falta dessa primeira etapa impactou diretamente o desenvolvimento escolar da aluna, que não tinha interesse pelos estudos. A pedagoga passou, então, a instigar a curiosidade da jovem, estimulando-a a observar palavras e buscar seus significados.
Após vários meses de trabalho, a evolução ficou evidente. Numa aula de biologia, a estudante identificou e explicou palavras relacionadas ao Outubro Rosa, previamente trabalhadas em Libras. “Toda a sala aplaudiu na língua dos sinais, levantando e balançando as mãos. Foi um momento emocionante”, lembra Clery.
O processo se intensificou quando Clery decidiu presenteá-la com o livro Além do Quintal, do administrador, professor e escritor Nelson Luiz Pereira. A linguagem simples voltada ao cotidiano tornou a obra o ponto de partida ideal para a jovem desenvolver a leitura. Todos os dias, Suane lê pelo menos meia página do livro, destacando palavras que já consegue reconhecer. O aplicativo Hand Talk, que traduz textos em português para Libras por meio de avatares 3D, tornou-se um aliado valioso no seu processo de aprendizagem.
“As palavras que a Suane não entende no livro, ela busca no aplicativo. Por exemplo: se ela quer aprender a escrever “casa” , ela vai lá no aplicativo, escreve “casa” e o aplicativo faz o sinal referente à palavra. Daí ela escreve “casa” com a mão dela e soletra. Então, hoje, em todo lugar que a gente vai na escola que tem cartaz, coisas escritas, que antes ela nem olhava, ela para, mexe as mãos soletrando a palavra e faz o sinal”, detalha a professora. “A Suane despertou para o mundo das palavras”, diz Clery, empolgada.

Suane com o livro “Além do Quintal”, que ela está lendo aos poucos | Foto: Arquivo pessoal
Letramento, não alfabetização
A pedagoga enfatiza que o termo correto para o processo educativo do surdo é “letramento”, não alfabetização, pois enquanto ouvintes aprendem naturalmente com base no som, o surdo constrói conhecimento por meio da visão e dos sinais. A escrita vem depois, dependendo da mediação adequada.
“Você alfabetiza pelo método fonético e, no caso do surdo, isso não é possível porque ele não tem estímulo auditivo. Por isso, o correto é dizer ‘letramento do surdo’. A Suane está na fase de letramento”, reforça a professora.
A trajetória de Suane, segundo Clery, foi marcada pela ausência de profissionais fluentes em Libras nos primeiros anos. “O ideal é que crianças pequenas tenham intérpretes e professores surdos para ensinar Libras. Se ela tivesse aprendido Libras antes, eu estaria hoje atuando como intérprete, e não como bilíngue”, avalia.
Apesar das lacunas acumuladas, o avanço recente tem sido significativo. Suane passou a observar cartazes pela escola, soletrar palavras com as mãos e relacionar sinais à escrita. Sua memória, explica Clery, é “visual e manual”: quando esquece uma palavra, soletra com as mãos para lembrar. A docente, inclusive, pretende aprofundar esse conhecimento em uma futura pesquisa de doutorado.
Planos para 2025 e apoio da escola
Se permanecer com a estudante no próximo ano — Clery é contratada em caráter temporário —, o foco será ampliar o vocabulário, trabalhar nomes de disciplinas, meses, dias da semana, bairros da cidade e iniciar a produção de textos. “Hoje ela não consegue produzir um texto, mas vamos caminhar para isso. Será o meu desafio”, adianta a professora, que também atribui o sucesso do trabalho ao apoio da Escola Duarte Magalhães. “Não faço nada sozinha. A escola me apoia bastante e me dá autonomia. Conto sempre com o apoio da diretoria. A Duarte Magalhães é um exemplo em inclusão”, faz questão de ressaltar.
Para Clery, ver Suane despertar para a leitura depois de anos de dificuldades já representa uma vitória coletiva. “Se conseguirmos fazer a Suane ler e deixar essa marca na vida dela, teremos cumprido nossa missão”.
Orgulho e gratidão
Fabiane Rux Porath, mãe da adolescente, conta que a filha deu uma guinada no desenvolvimento. “E o maior progresso foi na leitura. Até o início deste ano, ela não tinha nem um pouco de interesse nos estudos em geral. Isso sempre me preocupou muito, porque leitura é vida, é importante em todas as áreas, principalmente na espiritual. Desde que a Suane começou a frequentar a escola, minha oração sempre foi para que ela despertasse para a leitura. Foram mais de 10 anos orando por essa causa”, diz, destacando que é muito grata à professora Clery. “Ela se empenhou em ajudar a Suane. A Clery sabe de toda a luta… e também estou muito orgulhosa da minha filha”, finaliza.

Fabiane e a filha | Foto: Arquivo pessoal