Mesmo considerada popular e livre, a internet não é “terra de ninguém”, onde não existem leis que devem ser obedecidas por todos. Apesar da aparente sensação de distanciamento virtual e anonimato, quando a internet vira meio para ocorrência de crimes e atos que causem danos a outra pessoa, a responsabilização e punição do responsável, seja na esfera civil e até mesmo na esfera penal, é possível.
“A pessoa que desenvolveu essas redes centrais, que ligam a internet, e o próprio sistema, acabou abrindo mão, do ponto de vista financeiro, para que isso se tornasse efetivamente popular, efetivamente livre. Mas ser livre não significa que seja uma terra de ninguém. As regras que a gente aplica no mundo físico a gente tem que aplicar no mundo virtual”, diz o professor de Direito e Informática da Católica de Santa Catarina, o advogado Raphael Rocha Lopes.
Entre os crimes mais cometidos na internet, o especialista afirma que lideram o ranking os casos de calúnia – quando se acusa uma pessoa de um crime que ela não cometeu -, difamação – quando se ofende publicamente uma pessoa com certa gravidade – e injúria, quando a ofensa é feita pessoalmente.
Em tempos de eleições no país, os casos de crimes contra a honra e de danos morais ganharam repercussão, sendo frequentes as calúnias e difamações, que podem vir de anônimos e até mesmo de perfis falsos nas redes sociais. “Toda e qualquer pessoa que causar um prejuízo não justificado, um dano não justificado a outra pessoa, vai ter que ressarcir. Não é o fato de criar um perfil falso que vai impossibilitar a identificação”, explica o advogado.
Ele destaca ainda que não se pode confundir a liberdade de expressão com ofensa gratuita. “Tirando alguns países, a internet é uma terra sem censura, mas tudo o que for veiculado lá vai ser medido até o limite da liberdade de expressão. Eu posso não concordar com um monte de coisa, mas isso não me dá direito de ofender pessoalmente determinadas pessoas ou as pessoas que discordam de mim”, pontua o especialista.
Crimes na internet atingem o mundo real
Os crimes mais cometidos na internet, entre eles os de dano moral e contra a honra, também acontecem no “mundo real” e possuem as mesmas consequências. No entanto, há duas principais diferenças, atenta o advogado. A primeira é que na internet é mais difícil identificar o autor do crime. “Mas não impossível, porque existem os IPs, que são os protocolos de identificação que vão identificar de qual computador saiu a publicação”, afirma Lopes.
Um dos aspectos que dificultam a apuração dos responsáveis, na visão do advogado, é a criptografia – que codifica os dados de forma que somente o emissor e receptor da mensagem tenham acesso ao conteúdo -, assim como os meios utilizados por pessoas especialistas na área. “Essas pessoas utilizam sistemas não necessariamente criptografado, mas que vai pipocar em vários lugares do mundo antes de chegar no computador dele”, explica o professor, observando que, normalmente, as pessoas leigas são mais facilmente identificadas. “São aquelas que querem, por exemplo, se vingar de uma ex-namorada (divulgando imagens ou vídeos íntimos), ou se vingar do patrão, ou do vizinho. São esses que acham que vão entrar numa lan house ou em uma internet aberta e vão fazer o que quiserem e que não vai acontecer nada com elas”, comenta.
Faltam delegacias especializadas
A falta de delegacias especializadas neste tipo de crime ainda é um problema do mundo real. No país, conforme dados da SaferNet – associação de enfrentamento aos crimes e violações aos Direitos Humanos na Internet – existem 14 delegacias especializadas distribuídas. Com a falta de estruturas próprias e até mesmo com a falta de recursos financeiros para contratação de mais efetivo e também para a capacitação, a identificação dos responsáveis acaba dependendo do trabalho dos próprios advogados, por meio de ordens judiciais. “Para duas coisas: tentar identificar quem é o autor e tentar diminuir o prejuízo (da vítima)”, explica o professor.
É este prejuízo que Lopes qualifica como o segundo principal problema do crime na internet em relação ao mundo real. “Quando se trata de calúnia e difamação, que são crimes contra a honra, ou de danos morais, a repercussão é literalmente milhões de vezes maior”, explica. Isso porque, em um caso hipotético em que uma pessoa ofende outra na frente de uma testemunha, apenas os próprios envolvidos, e ocasionalmente alguém que ouviu ou presenciou de longe saberão o que aconteceu. “Mas se for no Facebook, por exemplo, e se a pessoa tiver 500 amigos, mil amigos, ou dois mil amigos, a perspectiva de problemas, de danos, é maior, assim como se isso for compartilhado, aí a gente perde (de mensurar) o dano”, esclarece Lopes.
Mudanças na legislação são necessárias
Por conta da grande e rápida repercussão dos crimes na internet, o advogado defende que o código penal deva ser aprimorado, sobretudo, para permitir punições mais severas. Ele explica já é tipificado o crime de difamação, por exemplo. Porém, o professor acredita ser necessária a qualificação da difamação virtual em razão do tamanho do dano e prejuízos à vítima.
“A difamação feita através do mundo virtual tem um alcance muito maior, e as penas são relativamente pequenas. Será que é justo que a pena seja pequena com uma consequência tão gigante como tem? Quantos casos de suicídio a gente ouve falar, isso porque não são divulgados todos”, argumenta Lopes, citando os casos de vazamento de vídeos e imagens íntimas como exemplo. Nesses casos, quase sempre, as mulheres são as maiores vítimas.
Segundo informa o especialista, existem em andamento hoje, somente na Câmara dos Deputados, 13 projetos de lei tratando de crimes cibernéticos. “Um crime, para ser crime, precisa estar tipificado. Se eu criar qualquer tipo de dano moral para alguém, essa pessoa vai ter direito a uma indenização por danos morais, na esfera civil, mesmo se for uma conduta nova que não está prevista. Na esfera penal é diferente, tem que estar escrito direitinho. Então, os crimes cibernéticos às vezes encontram problemas por falta de tipificaçao”, afirma Lopes.
Contudo, o advogado lembra que as leis são desenvolvidas conforme a sociedade evolui, o que demanda tempo. “A lei, o direito em si, vem sempre depois de as coisas acontecerem. A internet aconteceu e agora a gente está tentando se ajustar. Estamos em um processo de evolução que ainda vai demorar algum tempo”, finaliza.