As incríveis aventuras de Rolf Hermann pelo mundo

Foto: Fábio Junkes

Por: Elisângela Pezzutti

19/09/2024 - 07:09 - Atualizada em: 20/09/2024 - 13:07

“O que a vida quer da gente é coragem”. Esta célebre frase está contida no livro “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, considerado um dos maiores clássicos da literatura brasileira. E coragem foi algo que nunca faltou para Rolf Botho Hermann, hoje com 93 anos, e que em 1972 fundou a Carroçarias Argi.

Rolf passou parte de sua infância em Campinas (SP), onde levava uma vida tranquila. Mas, tudo mudou quando seu pai, o alemão Hans Richard Hermann, decidiu levar esposa e filhos para conhecer sua terra natal. “Quando embarcamos no Porto de Santos, meu pai percebeu alguns exercícios de guerra e, se soubesse disso antes, não teríamos viajado”.

Ainda no navio, Hans foi convocado para o serviço militar. Por falar bem inglês, português, francês, alemão e razoavelmente bem o espanhol, ele prestava serviços de tradutor e decifrador de mensagens criptografadas, até que precisou ir para a frente de batalha. “Nossas férias em família viraram uma vida cotidiana em meio à guerra. Assim, apesar de triste, tornou-se ‘habitual’ sobreviver aos bombardeios, ver casas incendiadas e pessoas morrendo”, conta Rolf.

Em 2019, ele lançou um livro que conta sua história de vida. A tiragem foi de 500 exemplares e todos foram doados na época.

Sobrevivendo em meio à 2ª Guerra Mundial

Na Alemanha, a família Hermann morou em Hamburgo, Munster e Munique, onde a casa ficava bem perto de uma fábrica da BMW, onde havia um abrigo subterrâneo para socorrer os moradores dos ataques aéreos.

O pequeno Rolf ainda não era alfabetizado em português quando viajou e na Alemanha iniciou os estudos a partir da 1ª série. “Em casa, falávamos o alemão clássico – Hochdeutsch – e tive certa dificuldade para entender algumas expressões usadas pelos colegas de escola. Era tratado como prussiano, num meio onde todos eram bávaros. Eu tinha uma origem, mas não me sentia pertencendo a nenhum lugar”, resume.

Para dar certa segurança às crianças, o governo as enviou a uma espécie de internato na área rural. “Umas das primeiras atividades que fizemos na tal escola foi abrir valas para esconder alimentos, principalmente repolho e milho, para sobrevivermos à fome e ao inverno. Não eram nada agradáveis o cheiro e a aparência dessa comida quando retirada das valas. É uma lembrança que me persegue até hoje e não tenho prazer em comer nada que seja feito com esses dois ingredientes”, conta.

Nesta época, Rolf presenciou a morte de um velho camponês. “O piloto que o atacou matou o boi que conduzia o arado e depois metralhou o homem, sem dar a ele nenhuma chance de defesa”, relembra. Apesar das dificuldades, a família Hermann tinha certa segurança em comparação ao pai, que estava na frente de batalha e foi atingido por uma granada que o fez perder a perna. Rolf era então um menino de 12 anos.

A 2ª Guerra acabou e de todas as perdas pessoais, a maior delas foi a morte de Hans, devido a complicações causadas pela amputação da perna. Quando Noêmia, mãe de Rolf, voltou para o Brasil, ele ficou na Alemanha para concluir os estudos.

Sozinho na Europa

Antes de partir, sua mãe lhe deu uma bicicleta. Rolf tinha então 18 anos e começou a trabalhar como aprendiz de ferramenteiro na empresa Rodenstock, que fabricava óculos. À noite estudava na Volkshochschule, uma universidade popular. Ele ainda trabalhava para a prefeitura, retirando neve das ruas e calçadas.

Nos fins de semana, fazia serviços de jardinagem para os vizinhos. O dinheiro era curto e ele tinha que pagar por tudo que não conseguisse fazer por conta própria, desde sua comida até o conserto de uma meia furada. “Aprendi da melhor forma a ter noção do valor do dinheiro e do trabalho”.

Nessa época, Rolf conheceu um homem que se autodenominava cientista e, com planos de fazer uma expedição para a África, buscava pessoas que encarassem o desafio com ele. “Fiquei empolgado e comecei a estudar árabe para me preparar para a odisseia, quando o ‘cientista’ me comunicou que havia desistido do projeto”.

Rolf resolveu voltar para o Brasil, mas, com pouco dinheiro, procurou um navio no qual pudesse pagar a passagem com trabalho. “Com essa ideia em mente iniciei uma viagem de bicicleta. Tudo que eu tinha cabia em uma mochila – algumas roupas, um cobertor, uma barraca para dormir, uma máquina fotográfica e 200 marcos”.

Na cidade de Baden, trabalhou na Brown Boveri, que fabricava implementos elétricos. Meses depois, seguiu para Dakar, passando pela Itália e Espanha. Comprou uma passagem de navio na França e foi para Tunis, capital da Tunísia, no Norte da África. Quase sem dinheiro, começou a fotografar os lugares por onde passava, escrever artigos e vender para revistas. “Soube que havia na Alemanha um Instituto de Pesquisa Científica similar ao nosso Butantã, que desenvolvia estudos sobre cobras venenosas, então eu as caçava e as enviava, ainda vivas, para este instituto”.

Viagem de camelo pelo deserto do Saara

Em Tunis, Rolf conheceu o jovem viajante Dieter Goetz, que estava indo para o Egito, e seguiu viagem com ele, pensando que por lá seria mais fácil encontrar um navio para o Brasil. Vendeu sua bicicleta e continuou a viagem pedindo carona. “Eu já tinha lido quase todos os romances de Karl May, um alemão que escrevia sobre aventuras que se passavam sempre no Oriente Médio ou com os índios americanos, e eu queria muito conhecer alguns dos cenários descritos por ele”, conta Rolf.

“Com o deserto do Saara tão perto, aproveitei para explorá-lo. Conhecemos um grupo de beduínos que nos ofereceram um camelo para seguirmos viagem com eles. Além de aprender a montar, dormir encostados na barriga do animal nos aquecia nas noites frias do deserto”.

Eles se separaram do grupo ao chegar na Líbia, onde foram atacados por rebeldes árabes armados. Rolf foi baleado no peito, mas como a arma era antiga “o estrago não foi tão grande” e ele teve tempo de mostrar seu passaporte, provando que era alemão. “Isso salvou a minha vida e alterou o rumo da história, que poderia ter tido um final trágico para mim”. Como pedido de desculpas, seus ex-algozes cuidaram de seu ferimento e chegaram a lhe dar comida na boca, utilizando para isso as próprias mãos, que antes, conforme seu costume, eram limpas com a areia do deserto.

A viagem continuou e, na fronteira entre Líbia e Egito, pegaram carona até próximo à cidade do Cairo.”Então, minha mochila sumiu. Não sei se foi roubada ou se a perdi. A situação só não piorou porque o pouco dinheiro que eu tinha e meus documentos estavam em meus bolsos e numa pasta de mão”.

 

O jovem Rolf Botho Hermann | Foto: Arquivo Pessoal

Perdido em uma pirâmide do Egito

No Cairo, Rolf trabalhou como mecânico. Um dia, ao visitar as pirâmides, ele e um amigo entraram em uma que não estava aberta à visitação e se perderam. Após se acalmarem, os dois conseguiram enxergar seus próprios rastros e fazer o caminho de volta.

Depois de quatro meses no Egito, Gamal Abdel Nasser e seu Comitê dos Oficiais Livres assumiram o poder, derrubando o Rei Faruk, e determinaram que os estrangeiros, com exceção dos russos, tinham 48 horas para sair do país. “Saímos apressados da cidade, e eu sem tempo de receber meu último salário”, conta Rolf, que junto com Dieter foi para Beirute, no Líbano, onde se hospedaram num monastério católico. “Além da belíssima arquitetura, as paisagens também eram lindas. De manhã, eu esquiava nas montanhas. À tarde tomava banho no Mar Mediterrâneo”, conta.

Saindo de Beirute, Rolf foi para Damasco, na Síria, e de lá para Bagdá, capital do Iraque, de onde Dieter seguiu para sua casa. Em Bagdá, trabalhou na construção de uma fábrica que processava juta. Fazia muito calor e, com algum conhecimento, Rolf construiu uma espécie de ar-condicionado, o que o ajudou a ganhar a simpatia de seus colegas de trabalho. Nas horas vagas, ele aproveitava para explorar o lugar e foi assim que, às margens do rio Eufrates, diz ter comido o melhor peixe de toda a sua vida.

Após juntar algum dinheiro, Rolf pegou um trem para Basra, no Iraque, depois foi de navio para o Paquistão. “Fiquei pouco tempo no Paquistão, e como ainda tinha um pouco de dinheiro, resolvi ir de navio para Bombaim. O lugar em si não era bonito e rodeado de muita pobreza. Decidi, então, que iria para Dehli de carona”. No caminho, conheceu o Taj Mahal, mausoléo que o imperador Shah Jahan construiu para sua esposa falecida. “O lugar é belíssimo, especialmente ao luar”, recorda.

De carona, ele saiu de Dehli. Ao chegar no destino do caroneiro, soube que havia uma família de missionários americanos e os procurou. Foi recebido com desconfiança, mas, após contar quase toda sua vida, convencendo o missionário sobre sua origem alemã e seu propósito de estudante, a família lhe ofereceu um generoso jantar.

Ao fim da refeição, foi avisado de que o único ventilador que funcionava estava no quarto do casal, já que os demais estavam estragados. Mesmo com as poucas ferramentas que tinha, Rolf consertou um ventilador e teve uma noite de sono mais confortável. No dia seguinte, soube que a geladeira da casa também não funcionava. “Pedi para ver a geladeira e constatei que eram apenas alguns fios soltos, algo que poderia ser consertado em minutos. Mas, para valorizar o meu trabalho e garantir mais uma noite de hospedagem, passei o dia ‘trabalhando’ no conserto e entreguei a geladeira funcionando ao anoitecer”, recorda Rolf, que passou muitas outras noites na casa dos missionários.

Todo os dias, apareciam coisas para consertar. “Desde um gramofone até um complexo fotômetro, que eu nem conhecia, mas que consegui fazer funcionar”. Assim, o que era para ser uma breve estadia se transformou em quase quatro meses de uma boa convivência. “Eu já era convidado para todo tipo de evento social que a família participasse, além de acompanhá-los nas tradicionais caçadas de tigres, mesmo sem nunca ter tido coragem de matar um animal”.

Um dia, o missionário lhe apresentou um Jeep que não estava funcionando bem. “Mesmo tendo uma carteira de motorista eu nunca tinha dirigido um carro”. Rolf obteve a carteira porque tinha uma carta de boa conduta emitida por autoridade alemã, cujo objetivo era afirmar a sua boa índole e “conduta” como cidadão. “Quando apresentei essa carta, ao entrar em Bagdá, o serviço entendeu que se tratava de uma habilitação para ‘conduzir’ automóveis e emitiu uma carteira de habilitação”, explica.

“Liguei o carro e fingia sentir o barulho do motor, enquanto ganhava tempo para deduzir o que fazia cada um dos três pedais e entender seu funcionamento. Saí aos solavancos, como qualquer motorista de primeira viagem”, recorda. No fim, o missionário lhe pagou por todos os serviços realizados naqueles meses de estadia.

Cerimônia de cremação às margens do rio Ganges

Rolf foi de trem até Varanasi, cidade indiana às margens do rio Ganges, onde assistiu cerimônias de cremação. “Depois, segui para Darjeeling, uma colônia britânica, famosa por seus chás e onde os europeus mais afortunados passavam férias. Lá aluguei um Jeep e segui para o Nepal, com o objetivo de ver, ainda que de longe, o Monte Everest”.

Por questões políticas e religiosas, o acesso ao Nepal era restrito e Rolf não conseguiu o visto de entrada. Mas, ele soube que o responsável pela aduana local passava por um bar na fronteira, à noite. “Fui até lá, me apresentei a ele, conversamos, e, após tomarmos alguns goles, consegui a autorização por escrito no meu passaporte”, conta.

No dia seguinte, subiu cerca de quatro mil metros e avistou o Monte Everest. “Presenciei o mais lindo pôr do sol que meus olhos já viram!”, recorda, contando que dormiu lá e passou muito frio. No dia seguinte foi até a fronteira para pegar o Jeep que havia alugado e voltar “feliz da vida” para Darjeeling.

Mas ele também queria conhecer a Oceania, atravessando a Austrália, e seguiu até Singapura. Sempre de carona e dormindo em monastérios ou estações ferroviárias, levou cerca de um mês passando pelo Paquistão do Leste (hoje Bangladesh), Birmânia (atualmente Myanmar), Sião (atual Tailândia) e Malásia, para finalmente chegar em Singapura, ilha que na época também era colônia da coroa britânica.

Ele brinca dizendo que “para não fugir da normalidade” chegou sem nenhum dinheiro e voltou a trabalhar para fazer nova reserva. Conseguiu trabalho no estaleiro de um holandês. “Ser ferramenteiro me abriu oportunidades de trabalho. Já havia consertado carros e, agora, navios!”

Após quase um ano na empresa, surgiu uma oportunidade de trabalho no Consulado Alemão, para ser hilfsamtsgehilfe, que nada mais era do que um assistente de office boy – aquele que fazia de tudo, desde pequenos consertos até a limpeza do escritório. Logo, ele conheceria o grande amor da sua vida.

Um encontro muito especial

Rolf estava morando com uma família do Ceilão (hoje Sri Lanka), quando o chefe de uma das repartições lhe entregou um bilhete com um número de telefone e o nome “Gillian”. Ela era assistente de um médico que prestava serviços para o consulado e filha de um oficial da Royal Air Force, que, devido ao trabalho, era frequentemente transferido de um país para outro.

Depois de criar coragem, Rolf ligou para a moça, convidando-a para um cinema. “Ela aceitou e quando desceu do táxi, me encantei imediatamente!”, relembra. Após o cinema, os dois foram jantar em um restaurante indiano escolhido por Gillian. “Até o curry, tempero indiano pelo qual eu não morria de amores, me pareceu delicioso”.

Cada dia mais apaixonado, Rolf fazia de tudo para conquistá-la. Estudava inglês, principalmente através de músicas, das quais ele decorava as frases mais bonitas e, depois, sempre que possível, usava em conversas com a moça. “Logo a pedi em noivado, com direito a uma pequena festa com a presença dos pais dela. Estávamos ainda em Singapura e eu decidi voltar para o Brasil para preparar a vinda de Gillian”, relembra.

Rolf se encantou por Gillian assim que a viu pela primeira vez | Foto: Arquivo pessoal

De volta ao Brasil

Viajando de terceira classe num navio holandês, Rolf levou 36 dias para chegar ao Porto de Santos, onde seu irmão foi lhe buscar. Os dois seguiram de trem para Joinville.

Gillian, ainda em Singapura, completou 21 anos e seus pais autorizaram sua vinda para o Brasil. “Eu já havia comprado uma passagem de navio para ela na classe econômica, mas seu pai pagou a diferença e ela viajou de primeira classe”, conta Rolf, que planejava chegar em Joinville, conseguir um trabalho e seguir a vida. Porém, assim que chegou foi recrutado para o serviço militar. “Eu tinha 24 anos e, enquanto aguardava ser chamado, consegui trabalho na Cônsul, onde ajudei a desenvolver um frigobar”. Cinco meses depois se apresentou ao Exército e, mesmo com dificuldade para falar e entender o português, se inscreveu para disputar uma vaga de formação de cabos e sargentos e foi aprovado.

Rolf e Gillian, um casal apaixonado | Foto: Arquivo pessoal

Vida a dois

O começo da vida do casal não foi fácil. Quando Gillian chegou, Rolf alugou uma quitinete. Seu salário era de 360 cruzeiros e só aluguel custava 500 cruzeiros. Outro problema era o idioma.

“Eu só precisava reaprender o português, mas Gillian não falava a língua e, por isso, não podia fazer outra coisa senão os serviços domésticos. Então, eu fazia todos os plantões possíveis no Exército e qualquer trabalho que pudesse render algum dinheiro, como cortar grama e limpar o jardim nas residências dos tenentes ou desenhar projetos de casas. Também fiz um acordo com a loja Prosdócimo, para oferecer os seus produtos aos conhecidos e ganhar uma comissão sobre as vendas”, conta.

No Exército, Rolf atuou como enfermeiro. “Fiz um curso de primeiros socorros, quando ainda sonhava com a expedição para a África, e isso bastou para um dos oficiais me transformar em responsável, entre outras coisas, pela aplicação de injeções”.

Em maio de 1957, Rolf e Gillian se casaram. Ele, um brasileiro que pouco falava português e se entendia melhor falando alemão, e ela uma inglesa que só falava inglês e começava a tentar entender o português e o alemão, num cenário totalmente brasileiro, com convidados em sua maioria de origem alemã. “Ao fim da cerimônia, fomos para o apartamento de minha mãe, onde houve uma pequena festa, e depois para a noite de núpcias num hotel de Joinville. A lua de mel foi em Barra Velha, numa casa que minha mãe tinha na Praia Central”.

“Ficar pai é fácil, ser pai é difícil”

Em 1957, o serviço militar terminou e Rolf foi trabalhar na Klabin, em Telêmaco Borba (PR). Em abril de 1958, nasceu seu primeiro filho, Nikolaus. “Não me saí de todo mal trocando e lavando fraldas, fazendo mamadeiras e coisas do gênero”, conta Rolf, que ainda trabalhava na Klabin quando nasceu Richard, o segundo filho. “Com isso, as responsabilidades aumentaram e só me faziam confirmar que ‘ficar pai é fácil, ser pai é difícil'”.

Uma triste experiência

Na mesma época, surgiu uma oportunidade de trabalho na fábrica da Lutcher Brown S.A. Papel e Celulose, uma empresa norte-americana instalada na cidade de Candoi, distrito de Guarapuava (PR). Falar inglês ajudou Rolf, pois quase todos os diretores e gerentes eram estrangeiros. “Meu trabalho era operacional, mas a empresa ficou sem gerente na área elétrica e assumi o cargo. Então passei pela triste experiência de ver um funcionário, vítima de choque elétrico, morrer nos meus braços, por mais que tenhamos feito de tudo para reanimá-lo”, recorda Rolf.

Em Candoi nasceu Willian, seu terceiro filho. Ao completar quatro anos de trabalho na Lutcher, surgiu uma oportunidade para Rolf em São Paulo, na Massey Ferguson, fabricante de máquinas agrícolas. “Fomos morar no bairro do Sumarezinho e eu ia de ônibus trabalhar em Osasco. Embora corresse tudo bem no trabalho, não nos adaptamos ao lugar, aos vizinhos, ao clima, e nosso filho Nicky vivia doente”.

Sua mãe, Noêmia, tinha se mudado de Joinville para Jaraguá do Sul, onde abriu a “Livraria Alemã”, em frente ao Colégio Marista São Luís. “Ela conhecia dona Ana Fontana, recém-viúva, que com dificuldade tentava administrar a empresa Tribrasil, deixada pelo marido”, conta Rolf, completando que, então, dona Noêmia recomendou os serviços do filho para auxiliá-la no trabalho.

Rolf e a família vieram de São Paulo para Jaraguá do Sul, e ele começou a trabalhar na empresa, que fabricava grampos para roupa, escalas métricas e níveis para construção. “Dona Ana não tinha experiência com o negócio e era muito segura nos gastos, criando dificuldades para qualquer inovação. De quebra, por força de suas crenças religiosas, e batendo de frente com meu ceticismo a respeito, não era raro que eu tivesse que aguardar que ela ‘consultasse o marido falecido’ para a tomada de qualquer decisão”.

“Toda atitude é uma semente”

No começo, em Jaraguá, Rolf e a família moraram com dona Gillian, mas logo se mudaram. “Compramos, a prestação, um terreno num loteamento na Rua Verdi Lenzi, e construímos nele uma meia-água. Não tinha luz e a água que usávamos vinha de um poço. Mas, o primeiro passo tinha sido dado e, como toda atitude é uma semente, não demorou muito para iniciarmos a construção de uma casa de alvenaria. A partir de um desenho feito por mim, contratamos um pedreiro e viramos todos ajudantes, seguindo rigorosamente as ordens recebidas”.

O emprego na Tribrasil estava com os dias contados. Mesmo com salário inicial menor e indo contra a opinião de grande parte da família, Rolf aceitou uma proposta de trabalho na WEG. “A alegação de todos, inclusive do meu sogro que estava nos visitando, era ‘você é louco de ir trabalhar numa empresa que ninguém nunca ouviu falar'”, conta Rolf, que sem se deixar influenciar foi trabalhar como desenhista técnico mecânico na área de ferramentaria da WEG.

“Lá, fui desafiado a desenvolver uma ferramenta que possibilitasse fazer todo o processo de corte, furos, etc., de um par de chapas numa única operação. Consegui atender ao pedido e desenhei também uma ponte rolante – que facilitava a retirada de bobinas de aço silício do caminhão e o encaminhamento até o depósito. Considerando-se que as bobinas pesavam em média de seis a oito toneladas, o ganho foi bastante significativo quanto a tempo e segurança do processo”, conta Rolf. “Até minha última visita ao local, esse equipamento estava sendo usado, o que é para mim motivo de grande satisfação e reconhecimento profissional”, diz.

Já naquele tempo a WEG conciliava avanços tecnológicos e de pessoas, de forma que ninguém saísse perdendo. “A racionalização nunca foi sinônimo de diminuir o número de colaboradores”, destaca Rolf, que trabalhava na empresa quando ela abriu o capital e cada trabalhador recebeu uma ação de presente. “Alguns colegas de trabalho não entenderam o valor do gesto e estavam dispostos a vender essa ação por um preço relativamente baixo. Eu comprei todas que consegui, formando assim a base dos meus bens”, conta Rolf, que passou a comprar ações sempre que a WEG as colocava no mercado.

O ganho com essas ações o fazia estar cada vez mais próximo de realizar o seu sonho de ter um negócio próprio. Entre as possibilidades de crescimento na época, pensou numa fábrica de trailer, que, mesmo sendo pouco comum no Brasil, já era muito usado na Europa e nos Estados Unidos. “Empolgado com a ideia, cheguei a desenhar alguns modelos”.

Certo dia, descobriu que Heinz Hornburg queria vender sua oficina, visualizando ali o espaço ideal para uma fabriqueta.

O negócio foi fechado e, na impossibilidade de fazer as duas coisas ao mesmo tempo, Rolf se viu obrigado a sair da WEG para cuidar do seu empreendimento. “Aluguei o prédio e comprei tudo que tinha dentro, que não era lá muita coisa, e fiquei com todos os empregados, além do próprio Heinz, que passou a trabalhar para mim. A empresa passou a se chamar ‘Estruturas Metálicas de Rolf Hermann'”, conta.

“Além de consertos, o Heinz já fabricava carrocerias abertas e baús e eu apenas dei continuidade ao negócio. Inovávamos em algumas coisas, como por exemplo, o carro fúnebre adaptado a partir de uma Kombi, que fizemos para a funerária do sr. Vitório Lazaris”, recorda.

Rolf destaca que a ajuda dos filhos foi fundamental. “Quando se recebe uma carroceria para conserto, a primeira providência é separá-la do caminhão e limpá-la muito bem para depois fazer o conserto. Quando o dia era de limpar carroceria, chegávamos em casa imundos e Gillian tratava de lavar todas as nossas roupas”.

Aos poucos, a empresa se especializou e passou a fazer furgão baú e ele assumiu também a tarefa de vendedor, visitando transportadoras e caminhoneiros em suas próprias casas. “Entendi, na prática, que o vendedor tem que conhecer o cliente, o que inclui saber um pouco sobre seus hábitos, sua família e gostos pessoais. Até escolher o horário certo para visitá-lo influencia nas suas decisões. Sempre haverá um ou outro assunto de interesse pessoal do cliente que podem ser abordados e abrirão caminho para criar um vínculo, se não de amizade, pelo menos de simpatia e confiança entre as partes. Aliás, essa confiança deve ser conquistada e mantida. Cumprir o prometido é essencial”, ensina Rolf.

Ao falar sobre confiança, ele lembra de uma carroceria fabricada para o sr. Blásio Mannes, que era relativamente fácil de ser feita, mas que na prática não funcionou, apresentando uma série de problemas. “Trabalhamos incansavelmente fazendo ajustes e acabamos substituindo a carroceria por uma nova”.

Buscando sempre a excelência na execução dos serviços, os negócios prosperaram e Rolf se sentiu seguro para comprar um terreno no Bairro Jaraguá Esquerdo para construção de uma nova sede para a empresa. Na época com 360 metros quadrados, hoje a área construída da Argi é de oito mil metros quadrados.

Uma curiosidade: o nome Argi é a junção das iniciais de Rolf e Gillian, segundo a pronúncia inglesa: R (ar) + G (gi).

“Inicialmente, o chão de fábrica era lugar só para homens, mas hoje temos muitas mulheres e até famílias inteiras. Sempre afirmei que os melhores funcionários eram os meus. Tenho convivência familiar com vários deles, já fui convidado para muitas festas e sou padrinho dos filhos de alguns. Tenho como cada vez mais correto o pensamento do empresário Eggon Silva, quando falava sobre administrar uma empresa: ‘dinheiro o banco arruma para você, máquinas você compra, mas gente é a parte mais difícil, essa você tem que valorizar'”.

Nos anos 1980, Rolf deu aulas de Macroeconomia na antiga Ferj, hoje Católica de SC. “Fiz muitos amigos entre o corpo docente e também entre meus alunos. Ainda hoje, muitas vezes escuto um ‘oi, professor’ na rua”.

Hermann em sua residência em Jaraguá do Sul | Foto: Arquivo pessoal

Sobre a esposa Gillian

Ao chegar no Brasil, com 21 anos recém-completados, Gillian teve que enfrentar uma cultura totalmente diferente, que contrastava com o conservadorismo inglês em que foi criada, onde não havia lugar para ‘abraços de urso’ e beijinhos tão comuns por aqui. Aipim, batata doce, tudo era novidade. Teve que aprender a coar café, ainda que soubesse fazer um chá delicioso. “Mas ela fez muitas amizades e foi recebida com muito carinho por meus tios e tias, que apreciavam nela, entre outras coisas, o esforço que fazia para aprender a língua alemã”, conta Rolf, dizendo que, mesmo integrada à família, Gillian se sentia muito só.

Um amor para toda a vida | Foto: Arquivo pessoal

“Sempre nos entendemos muito bem e, acima de tudo, respeitamos um ao outro. Certamente, nossa maior fonte de eventuais discordâncias foi quanto à forma de tratar as crianças. Eu, muito mais linha dura, e ela muito mais amorosa, com uma capacidade imensa de perdoar, ceder, sempre achando algum bom motivo para sair em defesa dos filhos”, conta Rolf. “Comigo, sua generosidade vinha em forma de total e irrestrito apoio em todas as minha decisões, não importando o risco envolvido”, completa.

De acordo com Rolf, a simplicidade era a marca registrada de Gillian. “E foi assim, com seu jeito simples, que ela tornou-se professora de inglês, sendo uma das primeiras em Jaraguá registrada como autônoma e que conseguiu se aposentar como tal”. Ela também foi voluntária na Rede Feminina de Combate ao Câncer e fundou um grupo de mulheres mastectomizadas.

Gillian Edith Hermann faleceu em 2015, aos 80 anos de idade.

Pai e avô amoroso | Foto: Arquivo pessoal

Apreciador das artes e dos esportes

Rolf cresceu ouvindo o pai tocar piano e diz que aprecia muito todas as artes. “Em primeiríssimo lugar a boa música. Tenho uma grande seleção de discos. Gosto de pintura, balé, um bom filme”. Leitor voraz, também aprecia o convívio com jovens, pois eles “sempre têm algo para ensinar”.

Foi presidente da Sociedade Cultura Artística (Scar) pela primeira vez no biênio 1979-1980. Entre 1984 e 1988 voltou à presidência com a missão de concretizar os planos de construção de um prédio para as escolas de música e pintura, atividades do coral e um pequeno teatro. Em 1990, foi novamente presidente da entidade. Ocupou, ainda, a presidência do Centro de Cultura Alemã de Jaraguá do Sul.

Além das artes, Rolf também tem um lado esportista. Ainda menino, jogava muito futebol de rua, com bola feita de pano velho. Na adolescência, praticou box e jiu-jitsu. Sempre gostou de esquiar, fazer alpinismo e andar de patins. “O sentimento de liberdade, o desafio e a satisfação de conseguir que emanam do esporte me orientam em toda a vida”, afirma.

Desde jovem, praticou muita natação, fazendo parte, inclusive, da equipe Master de atletas do Beira Rio Clube de Campo. “Aliás, saber nadar foi minha salvação num belo dia em que resolvi sair de bicicleta da Argi para levar os documentos fiscais da empresa para o escritório contábil e, atravessando a ponte pêncil do Jaraguá Esquerdo, indo em direção ao Centro, deixei cair no rio a pasta com todos os papéis”, conta Rolf, que se jogou no rio e, depois de nadar um pouco, conseguiu resgatar a maioria dos documentos, que tinham se espalhado em várias direções.

Do alto dos seus 92 anos, Rolf afirma: “posso dizer que tenho orgulho de muitas coisas – da minha querida outra metade, Gillian, dos meus filhos que, cada um com seu jeito, me ensinaram muito, minhas netas tão amorosas e netos sempre prestativos, e os meus amigos, que repartem a vida comigo”.

À frente de seu tempo

“Não é possível falar sobre meu pai sem destacar algumas qualidades e características que lhe são muito próprias, a começar pela inteligência. Desde criança eu ouvia sobre como seus conhecimentos de mecânica sempre o ajudaram a enfrentar dificuldades que apareceram durante o período que passou viajando pela Europa na sua juventude. Vi ele fazendo isso na prática, quando desmontou e consertou sozinho um carro”, afirma o filho mais velho, Nikolaus.

Nicky destaca a visão de negócios e de futuro de seu pai. “A Argi talvez seja o melhor exemplo disso, já que, certamente, não foi apostando apenas na sorte que ele decidiu por um ramo de atuação bastante inovador para a época”, diz. “E não foi novidade para nós quando todo mundo começou a falar em proteção ao meio ambiente, pois já fazíamos isso há muito tempo em casa, com a reciclagem de lixo, água e práticas modernas de utilização de energia fotovoltaica. Sem dúvida, meu pai é um homem à frente de seu tempo e também muito culto, generoso e extremamente justo. Ao mesmo tempo em que luta pelos seus direitos, cumpre todos os seus deveres de forma inquestionável. Sem dúvida, é um privilégio ser seu filho”, declara o primogênito.

Homem de paz

Richard Hermann afirma que o pai é pessoa única, de caráter e ética elevadíssimos. “Honesto, ao ponto de ganhar multas por não usar o cinto de segurança, ao ponto de não mentir perante um juiz e aceitar a multa. Honesto na vida familiar. Pessoa que serviu a sociedade em toda sua vida. Sempre deu de si sem pensar em retorno. Sempre foi de paz, contra a guerra, de amar, de contribuir, de ajudar sem pensar num retorno da vida eterna. Foi fiel com sua querida e amada esposa em todos os momentos, como prometeu no casamento. Ama seus filhos, noras, netos, primos, tios. Não sente dor, ao ponto de fazer tratamento de canal sem anestesia. Viu mortes, tristeza, chegou perto da morte várias vezes, mas sempre lutou pela vida, nunca desistiu. Culto, empreendedor, sempre alegre, ativo, vibrante e com pensamentos positivos”.

“Realmente meu pai é uma pessoa muito especial. Na Bíblia está escrito que os justos serão grandemente abençoados e prósperos. E meu pai é um homem muito justo e inteligente. Muitas pessoas me perguntam ‘como está passando o seu pai?’ e eu lhes digo que meu pai, mesmo com 93 anos, anda ou se sente melhor que nós, três filhos, juntos. O meu pai é um homem íntegro, justo e que evita fazer o mal”, afirma o filho mais novo, Willian.

 

 

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Elisângela Pezzutti

Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atua na área jornalística há mais de 25 anos, com experiência em reportagem, assessoria de imprensa e edição de textos.