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Veracidade, justiça e preconceito

Por: Pedro Leal

05/02/2016 - 13:02

No começo de janeiro, uma menina russo-germânica de 13 anos afirmou ter sido sequestrada e estuprada repetidas vezes por imigrantes “árabes ou africanos”, em Berlim. A menina havia desaparecido por 30 horas, e ao reaparecer tinha ferimentos no rosto. O caso provocou comoção, reacendeu as já ardentes chamas da xenofobia e levou a um incidente internacional quando o governo Russo alegou que Berlim estava “acobertando estupradores”.

O problema? Não houve sequestro, não houveram estupros. O desaparecimento e a história dramática vieram depois que a escola em que estudava, no distrito de Marzahn, ligou para os pais a respeito de um incidente (não esclarecido). Temendo punição, a menina “sumiu”, e interpretou o papel de vítima indefesa – afinal, quem puniria uma vítima de sequestro e estupro por mal comportamento na escola?.

Assim, mais uma onda de protestos da extrema direita alemã foi iniciada por causa de um crime que não ocorreu. O “causo” serviu para alimentar a retórica simplista que dominou a esfera pública europeia: a de que os refugiados do Oriente Médio são inerentemente estupradores e abusadores, “incapazes de viver de forma civilizada”.

Tal argumentação se aproveita de ocorrências hiper midiatizadas, como a onda de agressões a mulheres em Colônia, e atribui ao “outro”, o estranho, que “não pertence” a normalidade, neste caso o refugiado árabe, o caráter de inimigo da civilidade. Ao mesmo tempo ignora as denúncias de abuso sexual contra mulheres refugiadas, por parte de cidadãos europeus, ou mesmo o fato de que crimes como estupro e assédio sexual não são exclusividade de refugiados.  

Há outra lição a se tomar desse incidente – que deve ser lembrado como uma nódoa vergonhosa para a imprensa e as autoridades alemãs, que geraram alarde antes de se certificar da veracidade do relato: a importância de investigação e apuração quanto à denúncias e queixas de crime.

É compreensível que tendamos a reações emocionais ante a alegações chocantes – tais quais o estupro brutal de uma menina de 13 anos. No entanto, isso não isenta as autoridades competentes de sua responsabilidade por apurar a denúncia. Especialmente quando é ‘bombástica’. Citando o astrônomo americano Carl Sagan, “alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias”.

Nesses tempos de mediação online, cresceu uma mentalidade de que, em se tratando de denúncias de estupro, racismo, xenofobia e outras formas de opressão, a única coisa que deve importar é a palavra da vítima. Essa mentalidade pode parecer lógica para os movimentos sociais. Mas na prática, é o mesmo que jogar o sistema romano de justiça – a base para a maioria dos sistemas legais no ocidente – no lixo, descartando completamente o principio de presunção de inocência e trocando o por um principio de “certeza da culpa”.

Na ânsia por proteger as vítimas, as mesmas vozes que dizem defender justiça pedem por condenações sumárias. E nisso ignoram um dos fatores mais importantes em um julgamento: a incerteza da memória humana. Mais de 70% das condenações falsas são causadas por falsos positivos na identificação de suspeitos – muitas vezes indicados pelas vítimas*.. Fatores como stress, sugestionamento, intencional ou acidental, por parte de autoridades e familiares, preconceitos enraizados, e a própria imprecisão de memórias traumáticas, simultaneamente lembradas em detalhes vívidos e distorcidas, facilitam as identificações errôneas.

Isto ignorando a remota, mas real, possibilidade  da denúncia ser falsa, e não apenas a pessoa errada ser acusada, mas ser acusada por um crime que não aconteceu. É difícil discutir essa questão, porém, como para qualquer crime, denúncias falsas de estupro existem. Segundo uma pesquisa da Universidade de Massachussets, entre dois e oito porcento das acusações são deliberadamente falsas – uma quantia ínfima ante o volume de acusações verdadeiras, sim. Mas o dano causado a vida de seus acusados, considerados “culpados até que se prove o contrário”, não pode ser ignorado.

Isso obviamente não equivale a dizer que denúncias devam ser tratadas como falsas, mas que devem ser apuradas.  Tratar cada acusação como verdadeira a priori pouco faz pelas vítimas. Pior: a cada condenação injusta, põe em cheque a credibilidade de vítimas reais, e no longo prazo ajuda agressores a escaparem ilesos. Vide o mito pervasivo de que a maioria das acusações são falsas, desmentido por dados empíricos.

Não podemos deixar que emoções levem a uma condenação sumária, jogando fora os princípios que norteiam a justiça. Especialmente quando essa acusação é feita contra um coletivo de pessoas já tradicionalmente discriminadas, e portanto, vistas como “mais culpadas”. No caso berlinense, uma acusação falsa levou a formação de milícias contra os “estupradores” árabes – que sequer existiam. O clássico “O sol é para todos”, de Harper Lee, aborda essa questão pelo julgamento de Tom Robinson, falsamente acusado de estupro, e injustamente condenado apesar das evidências devido ao racismo do juri.

Uma base do pensamento lógico e do sistema de justiça é de que o ônus de prova fica com a acusação. O fato da acusação ser “uma vítima traumatizada” ou a existência de injustiças anteriores jamais deveria mudar isso para o “o ônus de prova fica com o acusado”. Não cabe ao réu provar sua inocência – ainda que tal constatação possa dar a impressão que as palavras da vítima estão “sendo ignoradas”.

* O dado é do The Innocence Project, ONG americana dedicada a exoneração de presos condenados injustamente

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Pedro Leal

Analista de mercado e mestre em jornalismo (universidades de Swansea, País de Gales, e Aarhus, Dinamarca).