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Seus ouvidos não são meus

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

05/11/2024 - 15:11

“antes de existir computador existia tevê, antes de existir tevê existia luz elétrica, antes de existir luz elétrica existia bicicleta, antes de existir bicicleta existia enciclopédia, antes de existir enciclopédia existia alfabeto, antes de existir alfabeto existia a voz, antes de existir a voz existia o silêncio” (Silêncio; Arnaldo Antunes)

Nesta era de transformação digital que impacta diretamente o modo como as pessoas se relacionam e se comunicam, os sons — sejam conversas, músicas ou notificações de mensagens — estão sempre presentes e, muitas vezes, invadem espaços compartilhados de maneira quase invasiva. De um lado, aqueles que transformam o viva-voz do celular em um alto-falante pessoal, sem se preocupar com quem está ao redor, e do outro, os que, de fones de ouvido, se isolam completamente, alheios ao ambiente e às pessoas próximas. Ambos os comportamentos refletem mudanças profundas nas dinâmicas sociais e nos trazem reflexões importantes sobre educação, respeito e limites na era digital.

Os auto-falantes ambulantes

A cena é comum: no meio de uma praça de alimentação, na fila de banco ou dentro de ônibus, alguém começa uma conversa no viva-voz do celular. Sem qualquer cerimônia, o interlocutor usa o volume máximo, com gestos e expressões exagerados, como se estivesse em um palco. Os detalhes pessoais de sua vida — sejam problemas familiares, assuntos de trabalho ou simplesmente trivialidades — se tornam públicos. Incomodam alguns, viram piada para outros.

Esse comportamento tem raízes que remontam a época em que as pessoas ainda carregavam pequenos tocadores de música e decidiam ouvir suas músicas favoritas em locais públicos, sem o uso de fones, igualmente sem se preocupar com o impacto daquele som nos outros. Com a popularização dos smartphones, essa prática ganhou nova dimensão. Hoje, além de músicas, compartilham-se conversas e assuntos pessoais, ampliando a falta de privacidade e o desrespeito pelo espaço público.

Esse hábito reflete a falta de consideração pelas pessoas ao redor, um tipo de comportamento que coloca o interesse individual acima do coletivo, muito reforçado em vários aspectos atualmente.

Os surdos seletivos

Mas há um contraponto interessante: o uso de fones de ouvido para se isolar do mundo. Se alguns expõem suas conversas em público, outros optam pelo isolamento quase total. Especialmente entre adolescentes e jovens, é comum ver pessoas que, mesmo em ambientes familiares ou entre amigos, estão constantemente conectadas a dispositivos e completamente alheias ao que se passa ao seu redor. O fone de ouvido se tornou uma espécie de refúgio pessoal, onde é possível criar uma carapaça que exclui as vozes e os sons externos.

Esse isolamento digital, no entanto, também traz consequências negativas. No ambiente profissional, por exemplo, prejudica a comunicação e o trabalho em equipe. No contexto familiar, diminui a qualidade das interações e cria barreiras invisíveis, mas muito significativas. Até entre em rodas de amigos tem se visto este comportamento.

Na era digital, a exposição excessiva e o isolamento exacerbado representam duas faces de uma mesma moeda: a dificuldade de equilibrar as necessidades pessoais com o respeito ao ambiente coletivo. No primeiro caso, a ausência de limites resulta na invasão do espaço alheio, enquanto, no segundo, cria uma desconexão com o ambiente e as pessoas que estão fisicamente presentes. Ambos os comportamentos nos fazem refletir sobre a necessidade de uma educação digital que valorize o respeito e a consciência do ambiente ao redor.

Sei que para os pais e educadores a dificuldade é ainda maior, pois precisam orientar as novas gerações sobre os limites do uso da tecnologia em espaços compartilhados, mas é absolutamente necessário debatermos o tema. Nas famílias, é importante estabelecer momentos de desconexão para valorizar as conversas presenciais e fortalecer os laços. Nas escolas, a questão também deve ser discutida, estimulando o desenvolvimento de uma cultura de respeito mútuo e de atenção ao próximo.

No final, tudo se resume a encontrar o equilíbrio entre a conexão digital e a interação humana, o que tem sido um grande desafio nos dias de hoje…

 

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.