Pretas apagadas

Imagem: IA/freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

11/07/2023 - 11:07 - Atualizada em: 11/07/2023 - 13:31

 

 

“♫ A carne mais barata do mercado é a carne negra/ (Só cego não vê)/ Que vai de graça pro presídio/ E para debaixo do plástico/ E vai de graça pro subemprego/ E pros hospitais psiquiátricos” (A carne, cantada por Elza Soares).

A internet é um mistério. Uma loucura, na realidade. A internet é praticamente um mundo sem fim; quase uma Terra do Nunca, quase uma Caverna do Dragão. Talvez uma mistura das duas. A internet, como, em regra toda nova tecnologia, veio para facilitar nossas vidas, dar-nos mais tempo, proporcionar-nos o tal do ócio criativo, criar uma brecha para tempos como mais qualidades com nossos filhos, mulheres, parentes e amigos.

Parece, porém, que efeito deu o contrário. Redes sociais com telas infinitas, daquela que não terminam nunca. Plataformas, redes sociais, jogos estão roubando, na cara dura, nosso tempo. E como achar, nesse palheiro descomunal, uma agulha que preste? Às vezes acontece.

Dos podcasts que costumo ouvir nos meus deslocamentos trabalho-casa ou casa-trabalho e nas minhas bastante raras (e curtas) caminhadas, descobri histórias de duas mulheres que não fazia ideia que existiam, fadadas ao esquecimento, não fossem alguns abnegados tentando trazer para a luz mulheres que sofreram o racismo das mais diversas formas.

Carolina Maria de Jesus

Carolina, a escritora que já foi a mais famosa do Brasil. Que bateu recorde de vendas e já esteve no topo da lista dos livros mais vendidos no Brasil. E que hoje é mais conhecida lá fora do que aqui. Carolina, a favelada, a mulher que morou na rua e viveu de lixo, a mulher que era uma escritora excepcional e foi descoberta por acaso.

Descobri Carolina só agora, por meio do podcast História Preta, de Thiago André. Na realidade, uma série com dez episódios sobre uma mulher pobre e preta e que desde criança alimentou o sonho de ser escritora, e, de fato, escreveu livros, poemas, peças de teatro, letras de música. Uma mulher que passou fome, com seus filhos, e vestiu vestidos caríssimos. Que, na sua ingenuidade não conseguiu distinguir quem queria ajudar de quem queria se aproveitar. Que foi discriminada, por ser preta e por ser mulher e por ser mãe solteira e até por escrever muito bem, inúmeras vezes e de diversas formas.

O simples fato de poucos dos leitores deste texto saberem quem foi Carolina Maria de Jesus, uma das maiores escritoras do Brasil, reconhecida mundialmente, já dá uma grande noção do que ela passou, e sofreu. E quase foi apagada da história literária brasileira.

Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo

Ou simplesmente Beata Maria de Araújo, a santa que nunca virou santa porque era do interior do interior do Brasil, preta, feia, pobre, analfabeta. Ela, descobri no podcast Rádio Novelo Apresenta, de uma equipe de jornalistas capitaneada por Branca Vianna.

Padre Cícero, de Juazeiro do Norte, todo mundo conhece. Maria do Araújo, provavelmente pouca gente. Ou muitíssimo pouca gente. Quase ninguém. Em março de 1889, Padre Cícero ministrou a eucaristia e a hóstia na boca de uma das beatas começou a sangrar. Dia Nobre, historiadora que descortinou esse episódio, teve dificuldades enormes para conseguir mais informações. Descobriu que foi instaurado um processo episcopal em 1891 para investigar o sangramento da hóstia. A história, na época, ganhou espaço em alguns jornais em junho e, em outubro daquele ano, estava na Europa. Esse tipo de milagre – ou de episódio, vamos lá! – não era inédito; o que a Igreja não gostou é que tivesse acontecido fora da Europa, ou pior, no interior do Brasil.

Relata-se, inclusive, que um padre francês chamado Chevalier, em carta, disse que Deus não iria deixar a Europa para lá para fazer milagres no Brasil, ainda mais com uma mulher preta. A ordem foi abafar o tal milagre. E, ao que parece, o Padre Cícero concordou, seja porque queria proteger a Beata Maria, de quem cuidava desde criança, seja porque também tinha outros interesses político na Igreja.

A história é longa, médicos vieram periciar as hóstias e a beata, a Igreja continuava inconformada, fazendo de tudo para desacreditá-la, especialmente porque a notícia se espalhou e todo mundo queria ver e tocar nela. Há relatos de que a beata chegou a ser torturada e acusada de histeria. Com o passar do tempo, passou de santa, virtuosa e devota para cachaceira, preguiçosa e sedutora de padres. Até o túmulo dela destruíram e desapareceram com seus restos mortais. A Igreja definitivamente quis apagá-la. Vale a pena ouvir o podcast e conhecer a história completa.

O fato é que tanto em um caso quanto em outro, houve a intenção de desqualificar duas mulheres pobres e pretas. De apagá-las. A internet e a tecnologia, por outro lado, vieram contribuir para que esses episódios não se apaguem, fazendo-nos refletir sobre nossa história.

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.