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O fim da sensibilidade contemplativa

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

08/10/2024 - 14:10 - Atualizada em: 08/10/2024 - 14:23

“♫ Mesmo quando tudo pede/ Um pouco mais de calma/ Até quando o corpo pede/ Um pouco mais de alma/ A vida não para/ /Enquanto o tempo/ Acelera e pede pressa/ Eu me recuso, faço hora/ Vou na valsa/ A vida é tão rara” (Paciência; Lenine).

Tempos de excessos. Excesso de informações, de estímulos, de superficialidade. A internet, que outrora foi celebrada como um espaço de conexão e conhecimento, tem se mostrado também como um campo de ruídos, muitos ruídos. Redes sociais, fake news, polarização. A avalanche de dados diária tem um preço, e esse preço é o fim da sensibilidade.

Em pontos de ônibus, filas de espera, mesas de jantar, o cenário é o mesmo: pessoas de cabeça baixa, imersas em seus smartphones, rolando a tela sem parar, na busca incessante por novos conteúdos. O contato humano perdeu espaço para o imediatismo digital. A comunicação interpessoal se resume a emojis e curtidas. Enquanto isso, a sensibilidade e o tato para perceber as sutilezas da vida vão sumindo.

Democracia ou ditadura?

As redes sociais, que prometiam uma nova era de democratização da informação, trouxeram a cultura do efêmero. Curtidas, compartilhamentos, memes, notícias de quinze segundos. Pouco se reflete, muito se consome. Conteúdos mais longos são ignorados e o hábito de ler livros – que demanda atenção, concentração e tempo – torna-se cada vez mais raro. A leitura, outrora um refúgio para a mente, uma oportunidade de imersão e reflexão, é preterida por vídeos curtos e manchetes sensacionalistas. Para muita gente, parece que dói ler.

Uma ditadura invisível toma conta de tudo.

Essa superficialidade não afeta apenas a capacidade de pensar criticamente. Ela mexe com os sentimentos. A quantidade de fake news e o ambiente tóxico das redes sociais, com a polarização de debates e o ataque constante a pessoas (em vez do debate de ideias), está tornando a humanidade insensível. Notícias sobre tragédias, violências e injustiças são consumidas com a mesma indiferença que fotos de gatos e piadas. Os seres humanos estão se tornando espectadores passivos de um mundo hiperconectado, onde a tragédia do outro se mistura ao entretenimento, sem provocar empatia. Dezenas de milhares de mortos na Palestina? Próximo. Cadeirada no debate? Passa. Crianças estupradas? Segue. Gatinho abraçado com cãozinho?

Reconexão

Nesse cenário, o hábito de refletir, de se debruçar sobre uma ideia com calma e profundidade, se tornou obsoleto. A meditação, o silêncio, o tempo para absorver e processar informações são cada vez mais escassos. Conexão contínua, sempre prontos para a próxima notificação, para o próximo post, para o próximo conteúdo. Não há tempo para parar e pensar. O imediatismo consome e, com ele, vai embora a capacidade de sensibilidade, de compaixão, de compreensão.

A redução do manuseio de livros é emblemática nesse processo. O livro, que exige um contato mais íntimo e pausado, cede lugar ao conteúdo digital, rápido e descartável. A leitura de um livro (mesmo que digital) exige paciência, reflexão e imersão. Ela permite explorar universos, compreender pontos de vista e exercitar a empatia. No entanto, com o declínio desse hábito, perdeu-se, também, a capacidade de meditar sobre as coisas mais profundas, sobre as relações humanas e sobre nós mesmos. E até sobre as coisas mais prosaicas.

É necessário o resgate. O resgate da sensibilidade, do tempo para refletir, do prazer de mergulhar em um livro ou em uma ideia. Desconectar para reconectar com o que realmente importa: o humano. A tecnologia tem seu lugar, mas ela não pode substituir aquilo que faz sentir e pensar profundamente. Em tempos de hiperconexão, a maior revolução pode ser aprender a pausar, a silenciar, a refletir.

 

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.