Mais uma liberdade é ferida pelo STF – Deltan Dallagnol

Foto: Divulgação

Por: Deltan Dallagnol

06/12/2023 - 06:12 - Atualizada em: 17/01/2024 - 15:55

 

Na última quarta-feira (29), a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal decidiu que veículos de imprensa, como jornais e emissoras de tv e rádio, podem ser responsabilizados pelas declarações e falas de entrevistados que imputam a prática de crimes a terceiros.

Em outras palavras, caso a imprensa divulgue uma entrevista em que uma pessoa fala que outra praticou um crime de corrupção, por exemplo, sem que o veículo jornalístico faça uma boa checagem prévia sobre se a acusação é verdadeira ou falsa, ele pode ter que pagar altas indenizações às vítimas.

A decisão do STF tem três grandes problemas. Primeiro, o das entrevistas ao vivo. Como os jornalistas podem saber o que um entrevistado falará ao vivo? Como é que os jornalistas poderão checar, por exemplo, se um entrevistado está falando a verdade ou mentindo durante uma entrevista ao vivo, em que a principal característica é a espontaneidade das respostas do entrevistado?

Os jornalistas simplesmente vão preferir não fazer mais entrevistas ao vivo para não serem processados, o que, aliás, acabou de acontecer comigo mesmo nesta semana, que tive uma entrevista cancelada por medo do jornal de realizar entrevistas com alguém quem denuncia corruptos.

Com isso, a sociedade perde grandes oportunidades de se manter bem informada e de ter acesso a diferentes visões de mundo, o que é importante não só para um debate público saudável, mas também para o fortalecimento da própria democracia.

O segundo problema grave da decisão do STF é o uso de termos vagos e genéricos para classificar quem será punido ou não. Na decisão, os ministros decidiram que os veículos poderão ser processados se “à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação” ou se não observaram “o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.

Como explicou o advogado constitucionalista André Marsiglia, a expressão “indícios concretos” é uma expressão contraditória, pois se é indício então não é concreto, e se é concreto não é indício, mas sim um fato.

Mais: quando está ou não satisfeito o “dever de cuidado”? Não há um checklist de coisas a serem checadas. E tem mais ainda: como um juiz, meses ou anos depois, vai poder afirmar se a apuração jornalística foi correta ou não tendo em conta as informações disponíveis no momento da entrevista?

Além disso, as próprias ferramentas do jornalismo são diferentes, por exemplo, das utilizadas pelas polícias e pelo Ministério Público, que têm amplos recursos materiais, humanos e tecnológicos para investigar fatos criminosos e acusar alguém da prática de crimes com significativa dose de certeza.

A falta de clareza na regra gera uma grave insegurança jurídica. O risco de ter que pagar indenizações fará com que uma de duas coisas aconteça: ou entrevistas serão evitadas, ou o serviço de jornalismo ficará mais caro para compensar riscos e perdas e, nos dois casos, quem perde é o cidadão.

Some-se que restrições à liberdade de expressão devem ser objetivas, sob pena de permitir que autoridades punam aqueles que desagradam os donos do poder. No Ministério Público eu fui punido por “quebra de decoro” por ter feito críticas republicanas e respeitosas ao STF e a Renan Calheiros. Palavras vagas são usadas para punir quem incomoda.

O terceiro problema, e o pior de todos eles, é a terrível consequência dessa decisão: o incentivo à autocensura por parte da própria imprensa, que vai deixar de denunciar ou divulgar grandes escândalos de corrupção por medo de ser responsabilizada futuramente e ter que pagar indenizações exorbitantes.

Denúncias históricas feitas à imprensa, como a entrevista bomba de Pedro Collor à Veja na década de 90, que culminou com o impeachment do então presidente Fernando Collor, se tornarão definitivamente coisa do passado, e esquemas como Mensalão ou Petrolão nunca virão à luz, permitindo que os corruptos continuem a nos roubar impunemente.

Depois de censurar redes sociais de cidadãos, as críticas a Lula feitas no período eleitoral, um documentário do Brasil Paralelo, investigar parlamentares por falas acobertadas por imunidade, agora o STF censura a imprensa. Aonde o arbítrio e a censura vão parar no Brasil?

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