Loucura real

Foto: prostooleh/Freepik

Por: Ana Kelly Borba da Silva Brustolin

12/04/2024 - 09:04 - Atualizada em: 12/04/2024 - 09:49

Nos últimos dias, os dramas da vida têm me convidado a andar de mãos dadas com a razão – visto que sou também muito emoção. A mente mente. O coração sente. O corpo dói. A alma grita. Reconheço, agora adulta, que os adultos, os quais sempre imaginei serem “maduros, conselheiros e prontos” são tão crianças quanto eu fui (e ainda sou), ou melhor, entendi, de fato, que estamos processo de construção. Lembro-me da leitura de “A Ciranda das Mulheres Sábias – Ser jovem enquanto velha, velha enquanto jovem” e teço uma analogia entre a força do arquétipo feminino com a trajetória histórica, os acertos e erros de nossas ancestrais. Gostaria de ter a minha vó, a velha anciã, a conselheira por perto para trocar gestos, olhares e falares…

Não tenho mais fisicamente uma delas e a outra mora distante de mim. Tento encontrar a tal Mulher Selvagem, porque na leitura de “As mulheres que correm com os lobos” entendi que não importa a cultura pela qual a mulher seja influenciada, ela compreende as palavras mulher e selvagem intuitivamente, visto que se trata do fruto do nosso parentesco absoluto, inegável e irrevogável com o feminino selvagem. Desse modo, sabemos que ela nos pertence; bem como nós a ela.

Relaciono, então, tais dramas da vida real com os ditos padrões sociais, ou seja, aquilo que é considerado “normal” para vivermos em sociedade.

Questiono-me.

Rememoro a leitura de O alienista”, uma narrativa escrita por Machado de Assis. Inicialmente, publicada no livro de contos Papéis avulsos, de 1882. A história narra a respeito do médico Simão Bacamarte, um homem da ciência, que constrói um hospício na vila de Itaguaí, conhecido como a Casa Verde.

Todavia, o que parecia ser fruto da evolução científica transforma-se em temor para os moradores daquela vila, pois Bacamarte passa a internar todas as pessoas que agem de maneira “não racional” na Casa Verde, de acordo com seus próprios critérios.

Após muitas situações ali vivenciadas, Bacamarte decide colocar todos “os loucos” na rua, já que “resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e, portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”.

Nesse ínterim, as razões da reclusão na Casa Verde são outras: “Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, “os loucos” em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros etc.”. Mais tarde, curados “esses loucos”, Simão Bacamarte “achou em si as peculiaridades do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto”. E, portanto, “recolheu-se à Casa Verde”, ou seja, “internou-se a si mesmo”.

A obra machadiana nos resgata a necessidade de reflexão do poder da alienação. Percebemos, no desenrolar da narrativa, que a loucura trazida por Machado não se refere apenas a uma loucura patológica, mas a uma loucura política, cultural e, sobretudo, social. Conforme lemos as linhas de tal enredo, notamos que não são somente os “pacientes” diagnosticados por Bacamarte os ditos “alienados”. O que constatamos como leitores?

É a sociedade que adoece!

E as consequências desse adoecimento na obra se apresenta na internação. E na nossa sociedade? Quais seriam os internos da Casa Verde? Para vocês a história escrita em 1882 parece real hoje, em 2024?!

Valho-me de um encontro com “Os Mutantes” em um dos seus hits, Balada do Louco, lançado em 1972. A letra foi composta inicialmente por Arnaldo Baptista, ganhando mais vida com a contribuição de Rita Lee e com a voz e performance de Ney Matogrosso: “Dizem que sou louco […] Mas louco é quem me diz, que não é feliz, eu sou feliz”. Notamos que a letra reflete sobre a liberdade de se legitimar diferente e a busca pela felicidade individual, independentemente dos padrões pré-estabelecidos pela sociedade.

Será que a loucura está sempre ligada ao desorganizar da ordem? Que ordem é essa? Não seria a loucura também criatividade, inversão, transposição? São questionamentos que me permeiam no agora. E, ultimamente, tenho compreendido que cresço mais com as perguntas do que com as respostas. Isso tem sido transformador e transformado muitas das minhas dores em humores, novos sabores e flores.

Para finalizar, trago o filme “Nise, o coração da loucura”, outra referência artística, evidenciando a médica psiquiatra Nise da Silveira que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil, com base na terapia ocupacional e com o uso da arte e da linguagem do inconsciente como expressão.

Nesse sentido, atento-me para que, na linguagem, pela linguagem e para a linguagem possamos perfurar sentidos e (im)possibilidades na concretude vital e nas tramas das linhas e perspectivas que se transpõem entre o poder, o saber e o agir ecoando, assim, no ser (nos seres) vivo (s).

Notícias no celular

Whatsapp

Ana Kelly Borba da Silva Brustolin

Doutoranda em Linguística pela UFSC, atua como professora de Língua Portuguesa e Redação e escritora, membro da Academia Desterrense de Literatura, ocupante da cadeira 6. É autora de livros e artigos na área da Língua Portuguesa, Literatura e Educação.