♫ “E a gente canta/ E a gente dança/ E a gente não se cansa/ De ser criança/ A gente brinca/ Na nossa velha infância”♫ (Velha infância; Tribalistas)
Qual foi a última vez que você viu uma criança com gesso por causa de alguma fratura? E a penúltima? Acredito que, se você não for um ortopedista ou um residente da emergência do hospital, faz tempo. Talvez até eles tenham dificuldade de ver essas cenas.
Aquela cena clássica de um braço ou perna engessados, com assinaturas e desenhos de amigos, parece ter desaparecido. Mas o que antes era quase um “rito de passagem” na infância — resultado de uma queda de bicicleta, um tombo de skate ou uma aventura em árvores — hoje é uma raridade. Isso não significa, no entanto, que as crianças ficaram mais cuidadosas ou que os ambientes estão mais seguros. A ausência de gessos revela algo mais profundo: elas simplesmente não estão mais se arriscando como antes.
Velha infância
A infância, outrora marcada por brincadeiras ao ar livre, como correr, subir em árvores, jogar bola nas ruas ou inventar aventuras em terrenos baldios, deu lugar a um cotidiano digital, repleto de telas. Tablets, smartphones e videogames se tornaram os companheiros inseparáveis das novas gerações, que preferem mundos virtuais a experiências reais. E, no mundo virtual, quedas e fraturas não acontecem.
Esse fenômeno é reflexo de uma transformação cultural. Em vez de incentivarmos o movimento e o contato com a natureza, optamos por ambientes controlados e atividades organizadas. Os quintais desapareceram, substituídos por apartamentos cada vez menores e cidades cada vez mais hostis. Os parques, onde antes se corriam riscos saudáveis, agora são espaços raros ou cercados de regras e limitações. Sem espaço para aventuras reais, as crianças encontram refúgio nas telas, onde não há o perigo de ralar o joelho ou quebrar um braço.
Essa mudança, contudo, não é apenas resultado de escolhas individuais. Ela está intrinsecamente ligada à era digital. Aplicativos de entretenimento, jogos online e redes sociais oferecem estímulos constantes e, muitas vezes, mais atraentes do que uma simples brincadeira ao ar livre. Além disso, o medo da insegurança — alimentado por notícias e vídeos compartilhados incessantemente na internet — faz com que muitos pais prefiram manter seus filhos dentro de casa, protegidos, mas também isolados.
Conquista ou retrocesso?
A ausência de gessos na infância pode parecer uma conquista, mas esconde impactos preocupantes. O sedentarismo infantil tem aumentado exponencialmente, trazendo consigo problemas como obesidade, déficit no desenvolvimento motor e até transtornos psicológicos, como ansiedade e dificuldade de socialização. Sem o contato físico com o mundo, as crianças deixam de aprender a lidar com desafios e a superar medos, habilidades essenciais para a vida adulta. Pesquisas já apontam que a atual geração de jovens é a que menos faz sexo em comparação às anteriores. Como ficarão as próximas?
Além disso, as lições que uma infância mais ativa proporciona estão sendo perdidas. Cair, se machucar e se levantar novamente faz parte do aprendizado humano. O gesso, embora incômodo, simbolizava um momento de superação, uma marca de coragem e, muitas vezes, um motivo de orgulho. Era a prova de que a criança havia vivido plenamente, experimentando o mundo ao máximo.
Que tipo de adultos estamos formando ao criar crianças que vivem apenas em bolhas seguras e digitais? A transformação digital é inegável, mas precisamos garantir que ela não prive as novas gerações de algo fundamental: o direito de serem crianças. Isso inclui a liberdade de explorar, de errar, de se sujar e, sim, de se machucar de vez em quando.