
O real não está nem na saída nem na chegada: ele se impõe pra gente é no meio da travessia”, escreveu Guimarães Rosa. Em outras palavras, a verdadeira viagem não é a chegada e sim o que está pelo caminho. Seja o caminho tortuoso ou retilíneo, com paisagem de praia ou de deserto, de mata fechada ou de gramado, entre um pequeno povoado ou uma metrópole, que só de pensar me deixa com vontade de andar por ele. Quando criança, na companhia dos meus primos, gostava das brincadeiras que inventávamos enquanto viajávamos acomodados no porta-malas ou no banco traseiro da Belina dourada de meu tio – contava os bois e cavalos à beira da estrada, os caminhões que transitavam no sentido contrário e criávamos palavras com as letras das placas dos veículos. Tudo ficava mais divertido. Na estrada, recordo de nunca ter infernizado meu pai com a fatídica pergunta: “Quanto falta para chegar?” Memoráveis mesmo eram as idas e vindas a São Bento do Sul e Joinville, de litorina, na companhia da minha mãe. E aquelas estações na serra, no meio da mata...
Apreciar o caminho sabendo aonde chegar é o ideal. Que tal então pegar a estrada e sair sem destino? Ou parar num lugar que lhe chamou a atenção pelo nome estampado na placa, a poucas centenas de metros atrás... Parece estranho, mas não há nada a perder, apenas aproveitar o momento e conhecer o próprio desejo. Feliz Deserto foi assim. Numa viagem pelo nordeste, do ônibus, avisto a placa identificando essa pequena localidade, no sul do Estado de Alagoas, praticamente no litoral. “Deserto” geralmente é uma palavra que lembra a dureza, a tristeza, a falta d’água, a falta de vida. E “feliz” veio na sequência como algo muito curioso aos meus olhos e pensamento. Fui atraído pelo nome. Não imaginava existir a localidade Feliz Deserto.
Desci do ônibus sem saber que direção tomar, os paralelepípedos eram bastante irregulares e as primeiras palavras que soltei na cidade foram: “Filha da puta!”, por causa de uma topada no dedão que melou de sangue a minha sandália. Era um lugar humilde, com alguns coqueiros. As pessoas nas janelas – as testemunhas dos acontecimentos do tempo. Nelson Rodrigues disse que a televisão matou a janela, a conexão da casa com a vida lá fora. Passando perto dessas janelas ouvia os nativos de um metro e meio de altura falando com se estivessem cuspindo pedras. De outros, ouve-se a fala, mas a boca não se mexe. Muitas vezes é uma dificuldade imensa conseguir entrar na conversa do autentico nordestino. Pouco se entende. Dialogam pouco, mas o que falam é muito importante.
Foi apenas um fim da manhã, uma tarde e uma noite em Feliz Deserto. O que lá me fascinou foi aquele céu azul sem fim. Até assombroso era. Olhando-o, lembrei até dos nossos ancestrais, da importância em observar o céu para a sua sobrevivência: as plantações são feitas de acordo com a estação das chuvas, a posição do sol colabora na arte de medir o tempo, e no mar, não longe dali, a pesca é influenciada pela lua. Tudo nesses cantos do nordeste funciona assim...