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Bowie, Mandela, e o radicalismo online

Por: Pedro Leal

26/01/2016 - 12:01 - Atualizada em: 26/01/2016 - 12:34

Entre 1974 e 1976, o músico, ator e compositor britânico David Bowie esteve em um lugar muito sombrio. Sob a sua última persona artística, o Duque Branco e Magro, Bowie viveu a base de uma dieta, em suas palavras, de pimenta, leite e cocaína. Personificando o pior da humanidade, Bowie e o Duque se converteram em uma coisa só. Essa fase foi marcada por um fascínio profundo pelo fascismo – culminando em uma entrevista vergonhosa para a Playboy, em que Bowie exaltou a necessidade de um regime nazi-fascista no Reino Unido, e chamou Hitler de “o primeiro rock star”.

O artista nunca negou esse período de sua vida. Jamais fez segredo ou pouco caso de seu condenável passado nazista. Mas após sua morte neste domingo, essa fase de sua vida, uma nódoa da qual ele jamais escondeu seu remorso (e da qual pouco se lembrava, dada as quantias homéricas de drogas que consumiu) foi desenterrada, retirada de contexto e usada para descartar uma carreira de 54 anos.

Para os revoltados e indignados formadores de opinião, páginas e usuários que cavaram o passado de Bowie, seus fãs e aqueles que se compadeceram com sua morte são apoiadores do nazismo, porque “David Bowie era um nazista”. Sua visão de mundo radical, autoritária e intolerante não vê separação entre artista e arte, e ao invés de considerar um homem como a soma de suas ações, o vê apenas como a pior de suas ações, cuidadosamente podada e editada para ser ainda pior.

Não é um fenômeno que seja exclusivo da morte de Bowie, tampouco de “antifas” (a gíria usada por anti-fascistas para se auto descrever). Quando o líder Sul Africano Nelson Mandela faleceu em dezembro de 2013, conservadores e supremacistas brancos não demoraram em descartar uma carreira política de 70 anos para focar em recorte de um ano (1961) em que Mandela adotou o terrorismo como tática contra o Apartheid.

Nem Bowie, nem Mandela esconderam seus esqueletos. Do contrário, fizeram de suas vidas após estes anos sombrios uma importante lição de humanidade. O outrora nazi-fascista Bowie foi uma forte voz para a aceitação da música negra na televisão americana e dedicou grande parte de sua vida a combater o autoritarismo. Mandela, por sua vez, foi uma das – se não A – mais importantes forças pela paz e contra o terrorismo na África do Sul. Ainda assim, seus algozes anônimos se creem desbravadores de um passado escondido e secreto. “Vejam o que eles não queriam que vocês vissem!”, esbravejam. Jean Paul Sartre é visto como monstro por seus romances com adolescentes. Para alguns, a filosofia de Heidegger deve ser descartada pelo filósofo ter sido nazista. Outros descartam toda a literatura pulp e os quadrinhos de Hergé pelo racismo e machismo de seus autores (no começo do século passado).

Via de regra, essas pessoas se creem dotadas de uma causa justa (e afinal, que movimento não se vê justo e laudável? Engana-se quem acha que terroristas, fascistas e genocidas se veem como os vilões, afinal). Em nome dessa retidão auto atribuída, se veem no direito de determinar quem deve e quem não deve ser lembrado, que artistas devem ser celebrados. Seus ataques não são apenas contra o falecido, mas contra seus fãs. Gostar da obra de uma pessoa que fez algo ruim (independente das circunstâncias, ou do resto da vida) é um crime imperdoável, para alguns “ciber-ativistas”. Mas por vezes, a mentalidade é o contrário.

Por vezes, o que ocorre é apagar tudo que há de ruim, e condenar como monstros e vilões aqueles que não idolatram o falecido (ou em alguns casos, o ainda vivo). Quando o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez faleceu, em 2013, não houve falta de quem apagasse os abusos e desmandos de Chávez. Afinal, eram “por uma boa causa”. A censura, o apoio a terroristas, ditaduras e traficantes e os desmandos do governo de Margaret Tatcher são ignorados por seus fãs no Reino Unido. As brutais ditaduras de Bassar al Assad, Muammar Al Ghadaffi e Saddam Hussein são pintadas como terras idílicas “caluniadas pelo imperialismo”. O abuso sexual por parte da escritora americana Marion Zimmer Bradley contra a própria filha é descartado como “mera difamação”, assim como ocorre com as denúncias contra os diretores Woody Allen e Roman Polanski – que tem quem defenda que devam ser expugnados dos registros do cinema.

Se formos seguir a mentalidade de quem crê piamente que a obra de artistas, figuras políticas, acadêmicos e autores deva ser julgada não pela sua qualidade, mas por seus autores, e que estes devam ser julgados com base em seu pior ato, teríamos de descartar toda a literatura, toda a música, toda a arte, toda a ciência e toda a filosofia. Todos temos esqueletos no armário. Alguns maiores, outros menores, mas que vistos isoladamente apagam toda uma história de vida. Lembremos-nos de Roland Barthes: o autor está morto, sua vida, suas opiniões, suas ideias são irrelevantes para o “leitor”. E lembremos-nos de Hamlet: lembre-se dos eventos, os bons e os ruins, e deixem que julguem o conjunto de acordo. O resto, é silêncio.

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Pedro Leal

Analista de mercado e mestre em jornalismo (universidades de Swansea, País de Gales, e Aarhus, Dinamarca).