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Alguém está observando você o tempo todo (e não é Deus)

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

29/10/2025 - 07:10

♫ (I always feel like somebody’s watching me)/ And I have no privacy, oh/ (I always feel like somebody’s watching me)/ Tell me, is it just a dream?” (Somebody’s watching me; Rockwell)

Em 1984 (será uma daquelas piadas do destino, ou ele se inspirou em George Orwell), Rockwell lançou uma música que viria a ser quase uma premonição. “Somebody’s Watching Me” soava como um delírio paranoico pop: “I always feel like somebody’s watching me…” (Eu sempre sinto como se alguém estivesse me observando”). O eu lírico era o vizinho desconfiado, o cidadão neurótico, o paranoico dos anos 1980 que achava ver olhos por todos os lados.

Pois bem, ele estava certo. Ou, pelo menos, preditivo.

Protocolo da paranoia

Hoje, o que antes era paranoia virou protocolo. Cada clique, cada deslize de dedo na tela, cada segundo de permanência num vídeo é cuidadosamente anotado, arquivado, cruzado e… vendido. O olhar não vem mais da janela do vizinho curioso, mas do algoritmo que nunca dorme. Ele sabe o que você gosta antes de você saber. Ele sugere o vídeo que você ainda não procurou, o produto que você ainda não desejou e a opinião que você ainda não formou.

A internet, que nasceu sob o ideal da liberdade, se transformou no maior panóptico já criado, aquele conceito do filósofo Jeremy Bentham que Michel Foucault tornou célebre: a prisão perfeita é aquela em que o preso nunca sabe quando está sendo vigiado. Hoje, o preso é você, eu, todos nós. O mais curioso é que entramos voluntariamente e continuamos lá mesmo sabendo disso tudo.

Publica-se o café da manhã, o treino, a vista da janela, o rosto cansado e, de vez em quando, a alma em pedaços. O mundo todo, supostamente, pode ver. Mas o que realmente vê é o sistema. As pessoas deslizam, o algoritmo anota. Sempre anota.

E o que ele anota não é o que se posta, mas no que se clica. Sobre o que se hesita. O que se curte e, principalmente, o que irrita o usuário. Ele se alimenta da emoção crua e, se o medo e a raiva geram mais engajamento que a serenidade e a empatia, é isso que ele vai mostrar mais vezes.

O resultado é um grande show de Truman digital, onde todos se acham protagonistas, mas poucos percebem que são personagens roteirizados pelo código. As redes sociais se tornaram o palco da vigilância consentida. Não há necessidade de câmeras escondidas. As vítimas, digo, os usuários mesmos as seguram nas mãos, felizes por colaborar com o espetáculo.

Liberdade entre aspas

O mais curioso é que, mesmo sabendo disso, as pessoas continuam se enganando. Criam perfis paralelos, limpam cookies, usam navegação anônima e acreditam, por alguns minutos, que escaparam. Até o algoritmo sorrir de canto de boca e recomendar exatamente o que o usuário gostaria de ver. É o tipo de feitiço que não precisa de magia, apenas dados.

Empresas, governos, partidos e anunciantes entenderam cedo que informação é poder. E, pela primeira vez na história, o poder é também preditivo: não se trata somente de saber o que você fez, mas de prever o que fará. Não é ficção científica, mas estatística com boas intenções comerciais.

A liberdade digital exige, hoje, um tipo novo de sabedoria: não basta ser esperto, é preciso ser invisível (ou tentar). A privacidade, essa palavra quase nostálgica, virou um luxo ou uma ilusão ou ambos.

No fim das contas, Rockwell estava certo: alguém está mesmo observando. Só que esse alguém não tem rosto, endereço ou intenção clara. Ele é feito de código, publicidade e predição. E o mais irônico é que, quando o medo de ser observado aparece, procura-se consolo nas mesmas redes que observam.

Afinal, como resistir à tentação de olhar para quem nos olha?

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.