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Ainda bem que nasci antes da internet

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

27/05/2025 - 09:05 - Atualizada em: 27/05/2025 - 14:01

♫ “Tomorrow people, where is your past?/ Tomorrow people, how long will you last?/ Tomorrow people, where is your past?/ Tomorrow people, how long will you last?”♫ (Tomorrow people, Ziggy Marley)

Não se trata de nostalgia gratuita ou de colocar a infância de ontem num pedestal. É natural que tenhamos a convicção que “no meu tempo é que era bom”; “as músicas da minha época eram melhores”; e por aí vai. Mas, vez ou outra, ao observar o cotidiano das crianças de hoje, surge, quase como um suspiro de alívio, o pensamento: ainda bem que nasci antes da internet (e nem estou falando das câmeras nos celulares…).

Nos anos 70 e 80, infância era, em regra, sinônimo de rua, sol, barulho e joelho ralado. Era a bicicleta que precisava de uma ajudinha na ladeira, o futebol no terreno baldio com gol feito de chinelo, a boneca que ganhava roupas feitas com retalhos de pano e criatividade. Era a ausência de roteiro pré-pronto. O tédio — hoje temido pelos pais como inimigo do bem-estar — era o terreno fértil da invenção. Ele obrigava a mente a criar, a buscar sentido, a transformar gravetos em espadas e caixas de papelão em fortalezas.

Os palcos da infância

A rua era o palco da socialização, e a diversidade dos encontros — com colegas mais velhos, mais novos, com ideias, e muitas vezes, formações diferentes — exigia convivência, negociação, escuta, adaptação. Não havia controle remoto para mudar de pessoa. Era olho no olho, na conversa (ou no braço) que se construíam vínculos, amizades e repertórios.

A informação, quando vinha, vinha devagar. Um verbete de enciclopédia, uma reportagem no telejornal, uma revista esquecida na sala de espera (hoje em dia ninguém mais lê revistas ou jornais nas salas de espera). Para saber, era preciso buscar na biblioteca, nos livros, nas conversas com os mais velhos. As visões de mundo se formavam no atrito de opiniões divergentes, na exposição a ideias contrastantes. Não havia algoritmo filtrando tudo que reforça aquilo que já acreditamos.

Infância algoritmatizada

Hoje, a infância é mais protegida, mais monitorada, mais nutrida de conteúdos (bons ou ruins). Mas, paradoxalmente, parece também mais limitada. As brincadeiras estão nas telas, os amigos nos avatares, e a resposta para qualquer pergunta vem mastigada por um vídeo de trinta segundos. A curiosidade parece ter cedido espaço à passividade. Não se precisa mais imaginar o mundo: basta assistir – e, se cansar, passar para o próximo vídeo.

Os algoritmos, criados para facilitar, acabaram confinando. Entregam mais do mesmo, viciam no conforto da repetição, isolam em bolhas onde a pluralidade vira ameaça e a dúvida, uma falha. Crianças e jovens passam horas absorvendo conteúdos formatados, projetados para prender atenção, mas não para instigar o pensamento. A visão de mundo se estreitou avassaladoramente, mesmo com acesso a mais informação do que jamais se imaginou possível.

Isso não significa que tudo no passado era melhor, ou que o digital é o vilão. A tecnologia é uma aliada poderosa quando bem utilizada. Mas é inegável que algo se perdeu no caminho: o tempo do vazio criativo, da descoberta solitária, da construção lenta e reflexiva do conhecimento.

Ainda bem que nasci antes da internet. Porque vivi uma infância em que a imaginação era o principal aplicativo, a rua era o nosso feed, os amigos não precisavam de senha para entrar em casa, as ideias, ainda que desencontradas, circulavam livres – como as crianças depois do dever de casa. E ainda bem que eram desencontradas, embora quase sempre compreendidas por todos de uma forma ou de outra.

 

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.