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A vida em modo vitrine

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

19/11/2025 - 07:11

“♫ Diga quem você é, me diga/ Me fale sobre a sua estrada/ Me conte sobre a sua vida/ Tira a máscara que cobre o seu rosto/ Se mostre e eu descubro se eu gosto/ Do seu verdadeiro jeito de ser” (Máscara; Pitty)

Há quem use as redes sociais como extensão natural da vida: compartilha aniversário, um evento especial, uma conquista rara, momentos que realmente pedem registro. Esse uso eventual, quase cerimonial, é a versão moderna do álbum de família, discreto, significativo, humano.

Mas existe outro fenômeno, muito mais cotidiano e ruidoso: o da vida transformada em vitrine permanente. A refeição de sempre vira espetáculo. O café de todas as manhãs ganha legenda inspiradora. O relacionamento precisa ser reafirmado diariamente, como se o amor dependesse não de intimidade, mas de métrica. E a passagem pelo hospital, ou meramente pelo consultório, vira oportunidade para um comunicado público seguido de um enigmático “obrigado a todos que mandaram mensagens”, ainda que ninguém tenha mandado absolutamente nada.

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Validades e vaidades

Esse tipo de exposição incessante não tem relação com celebração; tem relação com validade. Não validade moral, mas validade de existência: para alguns, parece que viver sem testemunhas deixa de fazer sentido. O cotidiano passa a ser conteúdo, e o conteúdo, moeda emocional. E, como toda moeda, precisa circular sem parar.

O problema não está no compartilhar (isso é da natureza humana desde o tempo das fogueiras tribais). O problema está na frequência, na intensidade e, principalmente, na tentativa de converter a vida ordinária em narrativa épica todos os dias.

Entretanto, quando tudo vira espetáculo, nada mais é extraordinário, quando tudo é anunciado, nada mais é íntimo, quando tudo é público, quase nada é verdadeiro.

Novelas pessoais

Curiosamente, essa necessidade de exposição está longe de ser sinal de segurança. Muitas vezes, é o oposto: uma tentativa de compensar silêncios internos com aplausos externos, de preencher vazios com curtidas, de transformar inseguranças em discursos motivacionais. O “vejam como estou feliz” costuma querer dizer “por favor, confirmem que estou bem”.

Há ainda o culto moderno da superação constante: gente que, ao menor resfriado, já publica foto do soro fisiológico no braço e agradece o “carinho de todos”, ainda que ninguém soubesse que ela estava doente. Essa dramatização diária produz uma espécie de novela pessoal que exige novos capítulos eternamente, porque o público (real ou imaginário) não pode esfriar. O eu vira personagem; a vida, roteiro e o perfil, palco.

E por que isso acontece? Parte vem da arquitetura das plataformas, que recompensam quem entrega constância e intensidade emocional. As redes sociais não pedem fatos, pedem engajamento. E engajamento é quase sempre fruto do exagero. Outra parte vem da pressão difusa para performar felicidade, competência, amor, saúde, produtividade e até fragilidade. Tudo precisa ser mostrado, registrado, explicado e aplaudido.

Paradoxalmente, nessa avalanche de transparência, o que mais desaparece é a autenticidade. Quem expõe tudo o tempo todo termina mostrando muito pouco de si. E quem reserva a si mesmo para momentos realmente significativos acaba tendo mais vida real do que feed. A convivência offline continua sendo o único lugar onde a felicidade não precisa de legenda, onde o amor não precisa ser postado, e onde a dor não precisa de palmas.

Talvez o equilíbrio esteja justamente aí: não em silenciar a vida, mas em recusar a obrigação de transformá-la em espetáculo. Porque, no fim, as coisas mais importantes não precisam de testemunha, precisam de presença.

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.