A inutilidade das certezas

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Por: Raphael Rocha Lopes

06/08/2024 - 15:08 - Atualizada em: 06/08/2024 - 16:00

“♫ Eu vejo um horizonte trêmulo / Eu tenho os olhos úmidos / Eu posso estar completamente enganado / Eu posso estar correndo pro lado errado / Mas a dúvida é o preço da pureza / E é inútil ter certeza” (Infinita Highway, Engenheiros do Hawaii)

As palavras de “Infinita Highway”, dos Engenheiros do Hawaii, música de 1987 ecoam de forma particularmente relevante e absurdamente atuais. Vivemos em uma era onde a dúvida parece ter perdido seu valor, substituída por uma necessidade incessante de ter certeza e opinião sobre tudo. Este fenômeno, amplamente alimentado pela internet, redes sociais e aplicativos de mensagens, molda comportamentos e redefine interações sociais de maneiras profundas e, muitas vezes, preocupantes.

Pessoas brigam por certezas que, em realidade, nunca tiveram. Membros de famílias deixam de se falar embolhados por suas convicções polarizadas, sem fazer questão de entender a visão do outro lado e, muitas vezes, sequer sem entender o que estão defendendo.

A Certeza em Tempos de Conectividade

A internet, com sua vastidão de informações, oferece um terreno fértil para a formação de opiniões rápidas e superficiais. Cada vez mais rápidas e mais superficiais. A facilidade de acesso à informação tem um lado obscuro: a proliferação de certezas (eu diria absolutas, se as certezas já não fossem absolutas por definição) e a redução do espaço para a dúvida e a reflexão crítica. Em plataformas como X, Facebook e Instagram, a opinião se torna uma moeda de troca, uma marca de identidade digital que precisa ser constantemente reafirmada e defendida.

É a necessidade da autoafirmação de suas convicções, mesmo que a justificativa seja bizarra, irreal, antidemocrática ou anticientífica.

As redes sociais incentivam a polarização ao criar bolhas informacionais intencionalmente. Os algoritmos destas plataformas reforçam as crenças pré-existentes dos usuários. O propósito é claro: deixar seus usuários cada vez mais tempo nelas e consumindo a publicidade que as sustenta. O fato é que esse ambiente gera um ciclo vicioso onde a certeza é constantemente reforçada, enquanto a dúvida e a reflexão são marginalizadas. A pressão para se posicionar sobre todos os assuntos, muitas vezes sem o devido conhecimento, leva, mais cedo ou mais tarde, à desinformação.

Os aplicativos de mensagens, como WhatsApp e Telegram, por sua vez, são canais poderosos para a disseminação rápida de informações – e fake news. Mensagens virais muitas vezes carregam afirmações categóricas que são aceitas sem questionamento, alimentando a falsa sensação de certeza. A velocidade da comunicação nesses aplicativos muitas vezes supera a capacidade dos indivíduos de verificarem a veracidade das informações recebidas.

Isso sem contar a falta de interação que está sendo disseminada na geração mais velha. As tias, tios, avós e avôs do Zap não limpam mais a calçada, não fazem mais crochê, não cuidam mais da horta, não conversam mais com os vizinhos. Boa parte deles está alucinada compartilhando qualquer coisa que recebam no aplicativo, desde, claro, que confirme suas teorias, tresloucadas ou não.

O Valor da Dúvida

No entanto, como sugere a letra da música, “a dúvida é o preço da pureza”. A dúvida nos obriga a questionar, a investigar mais a fundo, e a reconhecer a complexidade das questões. Em um mundo onde a informação é abundante, a habilidade de questionar e manter um espírito crítico é mais valiosa do que nunca.

O desafio que se coloca é encontrar o equilíbrio saudável entre a necessidade de ter opinião e a sabedoria de admitir a incerteza. Em um cenário digital cada vez mais acelerado e polarizado, cultivar a dúvida e a reflexão crítica não é apenas uma virtude, mas uma necessidade para manter a pureza e a integridade de nossas interações e decisões.

A salvação está nas crianças. Tirem os celulares delas, deixem-as enfadadas e no ócio das telas para fomentar a sua criatividade infantil. Deixem que se sujem, que errem e que não tenham certezas de tudo. A Terra não propriamente uma bola perfeitamente redonda, mas, com certeza, não é plana…

 

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.