O Escola sem Partido, Discurso e ideologia

Por: Pedro Leal

04/07/2016 - 14:07 - Atualizada em: 04/07/2016 - 14:36

Nos últimos meses, o movimento político “Escola sem Partido” e sua proposta de legislação tem ganho força novamente. Sustentado por grupos como Revoltados Online e o Movimento Brasil Livre, o Escola sem Partido propõe algo que, para ouvidos leigos, soa louvável: eliminar a “doutrinação ideológica” das escolas – conceito que se recusam terminantemente a definir.

Para o movimento, haveria uma crescente “doutrinação marxista” nas escolas, submetendo alunos indefesos ao jugo de professores sem interesse no conteúdo didático, mas sim em incutir sua “ideologia nefasta” nas pobres crianças. A solução seria criminalizar o “assédio ideológico” (termo criado pelo deputado Rogério Marinho), sujeitando professores à cadeia por “imporem” ideologia.

Seus apoiadores, muitos dos quais entre nossos legisladores – alguns dos quais, paradoxalmente, defendem projetos para incluir o ensino da doutrina religiosa do criacionismo em aulas de biologia e ciências, ou para entregar o controle das escolas públicas para a polícia militar e as forças armadas – caem em um erro comum: a noção de que suas crenças e posições políticas são naturais: que o “ideológico” é o que vai contra elas, contra “a norma natural”.

Assim, acreditam piamente que seria possível passar todo o conteúdo disciplinar – especialmente nas matérias de humanas, como história e sociologia, nas quais não há “visão neutra” – sem ideologia. Ignoram que, como ressalta bem o filósofo russo Mikhail Bakhtin, todo signo, e por extensão a linguagem em si, é ideológico. Não há como um discurso ser neutro.Ao escolher por certas palavras, toma-se uma posição. No estudo de história e de sociologia, isso é ainda mais claro: não há um olhar “neutro e amplo” sobre a história, mas uma miríade de perspectivas, pelas quais os eventos podem ser analisados – todas elas, ideológicas. Não há como ser neutro ao se discutir as causas e as consequências da revolução francesa; ao se discutir as interações entre países; o colonialismo; não há uma resposta “verdadeira e neutra” sobre a primeira guerra mundial: seria a narrativa de heróis e vilões, uma disputa de poder, um conflito econômico, uma reação ao colapso do colonialismo?

Mutias das ideias defendidas pelas entrelinhas do movimento são lugares comuns na sociedade brasileira: a manutenção dos padrões de gênero, a negação de que haja racismo sistêmico no país, a noção de que “política não se discute”, a visão moralista e paternalista de nossa história, a ausência de discussão sobre o período militar e a adoção de narrativas simplistas sobre o passado. Como se tais posições fossem “naturais” e “sem ideologia”.

A posição do Escola sem Partido e de seus apoiadores na legislatura quanto a educação é utilitária: não cabe ao sistema de ensino discutir a sociedade ou ensinar a pensar. Sua função é incutir pensamentos rijos e pré-definidos, sem qualquer coisa que desvie “do que a sociedade aceita”. Em seu ver, a sociedade como ela é não tem ideologia: apenas o subversivo, o desviante e o iconoclasta são ideólogos.

Ironicamente, nisso o movimento toma duas posições extremamente ideológicas: uma pela manutenção do Status Quo, ao proibir discussões de gênero, raça, sexualidade, política e classe – o que incluí, inadvertidamente, proibir a leitura da lei magna do país, dado que a constituição aborda os temas vistos como “doutrinação marxista” – e outra pela ideia de que certas posições ideológicas, como as defesas do regime militar ou a lógica contrária aos direitos humanos, sejam “neutras”. Pior: que a sociedade brasileira seja neutra, natural e correta, sem ideologia, e toda divergência dela seja ideologicamente corrompida. É uma forma sutil de reviver a noção de excepcionalismo cultural, ao alegar que o multiculturalismo é ideológico e errado, enquanto o isolamento cultural vigente é o certo – posição tomada por muitos dos parlamentares que defendem o movimento.

A educação cívica, ética e sociológica, a aplicação prática dos saberes e a análise dos eventos, nessa visão, cabem apenas aos pais – que teriam o direito de vetar o ensino de qualquer coisa que fosse contra suas crenças e opiniões. Como tal, todo conteúdo torna-se sujeito a censura prévia – não apenas em áreas de humanas, mas de ciências também. Livros “subversivos” ou “imorais” (incluindo clássicos como Macunaíma e Noite na Taberna) poderiam ser proscritos – e dentro dos termos das legislações propostas, o uso de eventos contemporâneos para contextualizar os conteúdos didáticos seria proibido.

Assim, o ambiente estudantil deixa de ser um espaço de discussão e formação do cidadão para ser um espaço de instrução formal: técnica, não conhecimento. Forma, não conteúdo. A mentalidade de que a escola deveria passar o que os pais aceitam que se aprenda não é nova: há um longo histórico no país de ações legais de pais inconformados dos filhos terem que ler livros “imorais” ou “satânicos”, ou de terem que fazer trabalhos sobre outras culturas.

Há de se lembrar: o alvo do Escola sem Partido não é só o ensino de base. Seu discurso abarca também o ensino superior, partindo da posição de que as universidades não são espaços para política, discussão e debate, mas apenas para a transferência técnica do conhecimento. É desta mentalidade que surgem casos como o de um estudante que em 2013, cursando relações internacionais na Universidade do Vale do Itajaí, obteve seus cinco minutos de fama ao se recusar a responder uma prova sobre a produção teórica de Karl Marx: ao invés de demonstrar seu conhecimento, Gasparino escreveu uma carta pública acusando o professor de doutrinação. Para muitos, infelizmente, o meio acadêmico não deve ser o espaço do confrontamento de ideias, onde se sai de sua zona de conforto, mas sim aquele onde se fica na zona de conforto e se acusa o que sai de “imposição ideológica”.