“Quando a morte me beijou”

Por: Nelson Luiz Pereira

27/06/2021 - 18:06 - Atualizada em: 27/06/2021 - 18:58

Era um lindo sábado de verão, propício para uma aventura. Partimos, eu e o Herbert. Lugar deslumbrante com cachoeira esplendorosa, trilhas e banho de rio. Mas eu queria o alto da cachoeira. Desafiei Herbert à escalada. Éramos brothers, mas competíamos entre nós. Partimos. O limo tornava as pedras escorregadias. Herbert ia na frente, e parecia querer me provar que era destemido. Em determinada altura nos damos conta do real perigo, mas nenhum dos dois queria amarelar.

Então, um pequeno escorregão, fez com que uma pedra rolasse por intermináveis segundos até atingir o rio. Herbert ‘jogou a toalha.’ Sugeriu que voltássemos. Retruquei que seguiria sozinho. E assim foi. Segui com medo, mas movido por um ímpeto arrebatador de chegar ao destino. Foi como se eu quisesse, inconscientemente, vingar a queda que tirara a vida de meu pai, num acidente de trabalho, quando eu tinha 17. Faltavam três metros para o topo. À frente, uma estreita passagem de 20 centímetros entre o úmido paredão e o precipício. Qualquer erro seria fatal.

As fendas do paredão eram os suportes para as mãos. A sustentação e o equilíbrio se dividiam, agora, entre as pernas e braços. Estendi o braço esquerdo e dei na fenda seguinte. Não tinha certeza se haveria espaço para a mão direita se encaixar na mesma fenda. Foi a maior decisão da minha vida. Soltei a mão direita, mas não havia o espaço para as duas mãos. Devido ao cansaço, concluí que seria necessário fazer trocas rápidas e precisas das mãos. Respirei fundo e executei o primeiro movimento.

Ao largar a mão esquerda, a direita grudou com exatidão e como um imã, na fenda. Faltava o último metro para o final. Apalpei o paredão com a mão esquerda, mas não encontrei mais fendas adiante. Minha limitada sobrevivência dependeria, agora, das contínuas e precisas alternâncias das mãos na justa fenda, até não resistir mais. Contemplei e excomunguei a rocha implacável e fria. Decidi que morreria tentando, tal qual meu pai morrera trabalhando. A resistência dos dedos se esvaia.

Nesses derradeiros segundos, senti o beijo da morte, e logo em seguida a inesquecível voz do Herbert: “aguenta firme brother, vou te ajudar a sair daí.” Descobri aos 20 anos de idade que, quem nunca sentiu o beijo da morte não entenderá que superação é vencer desafios, e não limites.