“O sonho de Raskólnikov”

Por: Nelson Luiz Pereira

30/05/2021 - 10:05 - Atualizada em: 30/05/2021 - 10:31

Passaram-se 155 anos para que eu lesse uma das maiores obras da literatura universal, “Crime e Castigo” de Fiódor Dostoiévski. Publicada em 1866, essa preciosidade é digna de alguns bons encontros de cafés para discussão, mas compartilho com vocês, uma única passagem que relata um sonho tido pelo personagem principal, Rodion Românovitch Raskólnikov, jovem e atormentado estudante de direito. Transcrevo-a na íntegra, dada a impressionante coincidência com nossos dias:

“Sonhou durante a sua doença, que o mundo todo estava condenado a ser vítima de uma terrível, inaudita e nunca vista praga que, originária das profundidades da Ásia, cairia sobre a Europa. Todos teriam que perecer, exceto uns tantos, muito poucos, escolhidos. Surgira uma nova triquina, ser microscópico que se introduzia no corpo das pessoas. Mas esses parasitas eram espíritos dotados de inteligência e de vontade. As pessoas que os apanhavam tornavam-se imediatamente loucas.

Mas que nunca, nunca se consideraram os homens tão inteligentes e perseverantes na verdade, como se consideravam estes que eram atacados pela moléstia. Nunca foram considerados mais infalíveis nos seus dogmas, nas suas conclusões científicas, nas suas convicções e crenças morais. Aldeias inteiras, cidades e povos inteiros foram contagiados e enlouqueceram. Todos estavam alarmados e não se entendiam uns aos outros; todos pensavam ser os únicos senhores da verdade, e só sofriam ao verem a dos outros e davam socos no peito, choravam e ficavam de braços caídos.

Não sabiam a quem nem como julgar; não podiam pôr-se de acordo sobre o que fosse mau. Não sabiam a quem inculpar nem a quem justificar. Os homens agrediam-se mutuamente, impelidos por um ódio insensato… Nas cidades…todos andavam assustados. Abandonaram os ofícios mais comezinhos, porque cada qual preconizava a sua ideia, os seus métodos, e não podia chegar a um acordo… Em alguns lugares, homens reuniam-se em grupos, faziam certas combinações e juravam não se zangarem, mas começavam imediatamente a fazer outra coisa completamente diferente da que acabaram de combinar, punham-se a inculpar-se mutuamente, brigavam e degolavam-se.

Houve incêndios, fome. Tudo e todos se perderam. Essa tal peste crescia e cada vez avançava mais. Somente alguns homens conseguiram salvar-se em todo o mundo, homens puros e escolhidos, destinados a dar início a uma nova linhagem humana e a uma nova vida, a renovar e a purificar a Terra, mas ninguém via esses seres em parte alguma, ninguém ouvia a sua palavra e a sua voz”

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Nelson Luiz Pereira

Administrador, escritor, membro do Conselho Editorial do OCP e colunista de opinião e história.