“O ‘califado eclesiástico ortodoxo’ perdeu”

Por: Nelson Luiz Pereira

21/08/2020 - 12:08 - Atualizada em: 21/08/2020 - 12:47

Sempre que a sociedade brasileira é surpreendida com um fato polêmico ou hediondo, que envolvem justiça, moral e sensatez, um inquisidor ‘califado’ eclesiástico, se levanta. O recente caso da menina capixaba, de 10 anos, que engravidou, estuprada pelo tio, sustenta bem essa asserção. Este ‘califado’, que se vale da Bíblia como um álibi e não como princípios, posiciona suas leis acima da Constituição.

De fato, nunca fomos uma sociedade genuinamente formatada. Ou, no ‘populês’, nunca fomos um ‘produto da casa’. Somos resultado de modelos alheios, moldados pelo luso-colonialismo tardio. Já fomos, outrora, governados por um estado eclesiástico; passamos pelo advento da fábrica no séc. XIX, na Inglaterra; deixamo-nos forjar pela nova sociedade euro industrial, que perdurou por, praticamente, 1 século. Até então, tivéramos tempo suficiente para absorvermos aquelas transformações.

Ocorre que, há poucas décadas, uma nova e importante transição, protagonizada pela Guerra Fria, gerou a revolucionária internet e, por meio dela, a sociedade digital. Ainda nem metabolizamos bem seus impactos, e já adentramos, com tudo, na nova sociedade high tech, da inteligência artificial e das máquinas espirituais. Se por um lado nos beneficiamos de tamanho desenvolvimento tecnológico, por outro, tudo isso têm ajudado a reverberar a voz inquisitória do ‘califado’.

Por isso, soa-me muito lógico e prudente, o fato de a vida em sociedade exigir, juridicamente, um conjunto de normas disciplinadoras, com regras de convivência consubstanciadas numa Constituição, a qual está acima de crendices e acima de todos. Embora eu seja, em tese, contrário ao aborto, a decisão que se operou, dada a circunstância fática, se orientou na coerência e sensatez, e torna-se prova irrefutável da importância da laicidade do estado.

Esse triste episódio me leva a deduzir que, se as leis disciplinadoras da convivência, fossem estabelecidas pelo ‘califado’ eclesiástico tupiniquim, eu já teria sido sentenciado à fogueira e a sociedade rumo ao auto aniquilamento. Mas, felizmente o obscurantismo perdeu.