“Minha viagem de um selo a um chapéu de viking”

Por: Nelson Luiz Pereira

19/04/2021 - 22:04 - Atualizada em: 19/04/2021 - 22:21

As férias escolares batiam à porta. O rápido e tímido selinho na boca de Glorinha, foi a maior conquista daquele último dia letivo de 1972, depois de um ano inteiro tentando. O platônico cupido havia me entorpecido aos 12 anos de idade. No caminho de casa tive um presságio de não mais vê-la. Era véspera de Natal. A família estava reunida para o jantar. Esperávamos a polenta ser virada na tábua ao centro da mesa, acompanhada de uma vasilha esmaltada, cheia de leite de vaca, fervido.

Enquanto todos se serviam, mamãe anunciou aquilo que para mim soou como uma sentença de morte da alma. Eu viajaria sozinho para uma terra distante, para trabalhar e estudar. Embora nem passasse pela minha cabeça, aquilo significava uma boca a menos em casa. Eu protestei dirigindo um olhar suplicante para papai, mas este não retribuiu. Significava que a ordem estava determinada e seria cumprida sem apelação. Pensei em fugir de casa no meio da noite.

Amanheceu o Natal mais melancólico de minha vida. Eu partiria no dia 2 daquele janeiro, ao final da tarde. Os dias derradeiros daquele que fora o ano mais especial de minha vida, transformara-se em suplício. Tudo se desmoronava em meu íntimo, tal qual um castelo de areia. O medo do desconhecido me atormentava. Então, amanheceu o fatídico dia da viagem. A primeira coisa que ajeitei na maletinha de madeira com dois fechos de metal, foi meu caderno escolar, onde eu havia anotado o endereço dela. Pelo menos aquilo poderia me manter vivo.

O momento do embarque, acompanhado pela família, foi de prantos. Minutos depois, o ronco do motor e a partida do ônibus, fizeram me sentir um “degredado filho de Eva”. Aquele velho ônibus ia coletando passageiros por estradas empoeiradas. Cheguei ao destino no dia seguinte próximo ao meio dia.

Ao descer do ônibus, me vi pisando no velho oeste. Nunca tinha visto tanta gente de bigode, chapéu e a cavalo, pelas ruas. Em um ano, já adaptado ao cheiro de cocô de cavalo, escrevi a ela 5 cartas, sem respostas. No final do segundo ano, retornei para o ninho de origem. Glorinha estava namorando. Me dei conta de que minha longa viagem se resumira a dois pontos extremos: de um selo a um chapéu de viking.