“Da Lama ao Caos”

Por: Nelson Luiz Pereira

09/02/2019 - 05:02

Em 1994 Chico Science chamava a atenção do mundo para os mangues com a composição “Da Lama ao Caos”. De forma revolucionária para o arquétipo de música da época, os mangueboys do Nação Zumbi extraíam dos mangues violentados, o grito de socorro propagado por uma mistura de sons, afro batuques, maracatu, ciranda, coco, hip hop e guitarras distorcidas.

Passados 25 anos, a composição de Chico Science, cuja vida fora interrompida aos 30 anos de idade, nunca se fez tão atual e oportuna diante do luto que amargamos por Brumadinho.

“O Sol queimou a lama do rio; eu vi um xié andando devagar; e um aratú pra lá e pra cá; um caranguejo andando pro Sul; saiu do mangue e virou gabiru. Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça; quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”. Esse trecho de sua composição transcende a melodia e soa profecia.

O mundo assistiu a mais uma peça macabra protagonizada por Minas Gerais. Testemunhou a dimensão do espírito latino, personificado nas suas extremadas fronteiras do bem e do mal. Se nos extasiamos com magníficas cenas de intensa sensibilidade, solidariedade, generosidade, dignidade, bravura, respeito e compaixão, também nos assombramos com despudoradas hienas se saciando da fria lógica custo X benefício.

Vem-nos então a indagação: Aquilo foi uma tragédia? Não, Brumadinho não foi, em essência, uma tragédia. Foi um bárbaro e ultrajante acidente.

A tragédia, como bem representada nos clássicos personagens do bardo Shakespeare, e como bem traduzidas por Nietzsche, reside nas profundezas da condição humana, tão transparentes no longo drama que continuamos assistindo.

A ambição, o egoísmo, a avareza, a insensatez, a negligência, a imoralidade, o poder incondicional. Eis onde paira e o que configura a tragédia humana materializada no infausto acidente.

Será até possível que tenhamos uma CPI para o julgamento dos responsáveis por essa dramática peça, mas será impossível encontrarmos as respostas que realmente ansiamos.

As respostas que buscamos resgatar entre a lama, o lixo, os urubus e a miséria, coabitam o arcabouço de natureza dual e antagônica que orientam as ações humanas.

Portanto, não as encontraremos enquanto persistirmos na lógica de desenvolvimento regido por valores materiais reajustáveis, e a vida como valor depreciável. É aqui que se revela a tragédia geradora de grandes destruições.

Parafraseando o sociólogo pernambucano Josué de Castro, com grifo meu, “vamos criar um satélite de ideias, fincar parabólicas em Mariana e Brumadinho e mostrar a cara do Brasil”.