“Terreno úbere”

Foto Arquivo Pexels

Por: Ana Kelly Borba da Silva Brustolin

03/11/2020 - 16:11 - Atualizada em: 04/11/2020 - 11:33

A pandemia da Covid-19 chegou-chegando. Até um minuto antes do isolamento social, muitas pessoas, envoltas pela frenética rotina diária (barulho de gente, de carros, de maquinários e outros), nem se davam conta do barulho dos animais, do barulho dos galhos das árvores, do cantarolar dos pássaros, do céu iluminado pelas estrelas…

Até que, obrigados a ficarem em casa, se não passaram a reparar mais em si mesmos, tiveram de reparar em algo além do “lucro“: seja no desenvolvimento dos filhos, na limpeza da casa, na natureza!

A natureza tem um grande poder de se regenerar – e avalio que nós, humanos, também, pois somos parte dela. Mesmo áreas que já tenham sofrido profundas alterações ou desmatamento conseguem regenerar-se, com o auxílio do tempo e de processos ecológicos naturais.

Nos primeiros dias de confinamento pelo coronavírus, muitos moradores de cidades redescobriram o canto dos pássaros. Em Barcelona, viram-se javalis; em Santiago, no Chile, um puma selvagem percorreu as ruas desertas; em Florianópolis, no meu bairro, um pato, uma cobra e um lagarto adentraram livremente no pátio do nosso condomínio. E os macaquinhos estavam pulando de galho em galho “conversando” entre si – enquanto eu e as crianças observávamos e ríamos, com alegria e entusiasmo(!), em contraponto ao confinamento social.

Com o declínio brutal da nossa presença humana pelas ruas, os animais silvestres têm caminho livre para explorar o habitat que tomamos deles…

Uma breve lembrança

Lembrei-me, agora, da Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual o escrivão da frota de Cabral teceu elogios à exuberante natureza brasílica, descrevendo assim: “em tal maneira é tão graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-ia nela tudo”.

Recomendo leitura desse documento peculiar e repleto de pormenores sobre o nosso país; em que se apontam as potencialidades da “nova terra”, retratando a imagem da grandeza da natureza – enaltecida em vários trechos.

A propósito, a Carta de Pero Vaz de Caminha enviada ao rei D. Manuel sobre o achamento (a descoberta) do Brasil, é considerada o primeiro documento redigido no Brasil e, por essa razão, assinala o marco literário do país (sendo uma espécie de certidão de nascimento).

Este texto faz parte da primeira manifestação literária atinente ao movimento do Quinhentismo, sendo o documento no qual Caminha registrou as suas impressões a respeito desta Terra que depois viria a ser chamada de Brasil: como a denominamos hoje.

O escrivão não se portou como um simples burocrata. A linguagem empregada impressiona pelos detalhes e as impressões de Pero Vaz de Caminha sobre o que observava e relatava, dando vida aos informes, além de uma grande dimensão humana e sensorial. Ele documenta a composição física à primeira vista do território.

Além disso, narra o episódio do desembarque dos portugueses na praia, o primeiro encontro entre os índios e os colonizadores e a primeira missa realizada aqui no Brasil.

Em meio a tantos fatos históricos, carregados de novidades e desafios, por parte dos nossos ancestrais envolvidos, a história continuou a ser contada… e, então, volto à ideia dos porquês vivido neste contexto atual de pandemia.

Descobertas e autoconhecimento

Os “porquês” dos nossos sofrimentos e desafios a serem enfrentados nem sempre serão esclarecidos imediatamente – como comumente desejamos.

Atormentamo-nos em busca de respostas supondo que, por meio delas, livraremo-nos dos problemas rapidamente. Contudo, dessa maneira, mantemo-nos em uma aguda arrogância, digna de seres materialistas, alimentando uma cômoda ilusão de que temos o controle sobre todos os fatos da vida.

A grande pausa pedida pelo planeta por meio dessa pandemia da Covid-19 está nos revelando espaços mais silenciosos e calmos pelas ruas, com menos tráfego de automóveis, por exemplo; e no céu, com menos voos aéreos… Eu tenho revivido muito, internamente, a minha infância, que fora em uma cidadezinha pequena, quieta e tranquila.

Tenho me permitido o saudosismo deleitoso, lembrando-me de pessoas queridas: vó, tias, tios, primos, amigos… enfim, oportunizando-me estar com eles e com essas sensações novamente. E tem sido muito bom! Sabem por quê? Além do silencioso barulho urbano exterior, há um novo tipo de silêncio também a ser notado: o interno.

E este, meus caros, surge quando alguém ou nós mesmos nos questionamos: “até quando vai durar esta pandemia?”, todavia ninguém pode responder. E resta-nos silenciar tal indagação.

Quanto ao silêncio, esse chegou vertiginoso. Muitos, embebidos da vida tresloucada, assustaram-se nele ou com ele. Mas, sim, podemos aprender a gostar dele ao nos darmos conta de que, através dele, acessamos muita informação interna valiosa e muito amor (próprio e a outrem); percepção esta que perdemos com a vida supersonora da qual fazemos parte e escolhemos ter e viver.

Entendam que “vida supersonora” se refere não apenas à vida urbana diária externa envolta por ambientes e relacionamentos com barulhos e falas, mas, também (e especialmente), a nossa vida interna.

Talvez seja um período para darmos novas partidas e abrirmos espaços internos silenciosos com o intuito de sentirmos e percebermos além, atentos às mensagens da natureza, expressas por terra, céus e mares!

Por fim, reporto-me à letra de “o cio da terra”, de Milton Nascimento e Chico Buarque: “Afagar a terra, conhecer os desejos da terra, cio da terra, propícia estação e fecundar o chão”. Observamos que esta letra fala sobre as fases da natureza, um cio natural da Mãe Terra. Que assim, igualmente, sejamos nós nesse período: afagados e preparados para sermos fecundados e darmos frutos ao nosso mundo interno e externo.