“O misterioso e heterogêneo universo linguístico”

Por: Ana Kelly Borba da Silva Brustolin

13/08/2020 - 15:08 - Atualizada em: 13/08/2020 - 15:45

O poema Pronominais, de Oswald de Andrade, propõe encurtar a distância entre a linguagem falada e a escrita. “Dê-me um cigarro diz a gramática do professor e do aluno […] Deixa disso camarada: Me dá um cigarro”. A intenção do autor foi atrair a atenção para as padronizações da chamada norma padrão.

Deste modo, vale-se da ironia para rejeitar as ideologias relativas à era parnasiana e destacar o fato de que o bom brasileiro é aquele que fala o português do Brasil, diariamente, comunicando-se com os seus interlocutores, respeitando os termos e a prosódia nacional: “Me dá um cigarro”.

Neste exemplo, verificamos o uso de próclise (uso comum aos brasileiros diferente do uso europeu), não permitido em início de frase, de acordo com as orientações normativas. No caso, em: “Dê-me um cigarro” a utilização de ênclise está em consonância com as regras da gramática. Mas, o que caracteriza a linguagem “correta”?

Sugiro evitarmos o uso deste termo e optarmos pela expressão “adequação linguística”. Por quê? Porque quando não se trata de ortografia, mas de fala real e outros aspectos da nossa língua, costumo sugerir aos alunos para compararmos a situação de fala com a escolha dos nossos trajes de roupas para as variadas ocasiões.

A gente usa as vestimentas de acordo com a situação de interação. O ideal seria que todas as pessoas tivessem um guarda-roupa linguístico bem diversificado: “roupa” para ir à festa de gala, à balada, ao barzinho, ao tribunal, à praia, ao supermercado, e outros.

Seria imprescindível que o indivíduo tivesse domínio da língua que usa no cotidiano, mas fosse, igualmente, buscar as outras normas de uso da língua para as mais variadas situações de interação humana quando necessário. Daí reside a função da escola, do Estado: prover os cidadãos do domínio da língua – desde os domínios de textos informais aos mais formais.

Em 1984, ano do meu nascimento, Caetano Veloso lançou o LP Velô e, entre as várias canções, havia Língua – no referido “bolachão” com participação de Elza Soares – tratando a respeito do vernáculo que nos permeia na imensidão das interações… Enfim, “o que quer o que pode esta língua?”, perguntam-se, há tempo, pesquisadores, professores, vestibulandos, admiradores, escritores, publicitários, curiosos do assunto e outros.

Dessa maneira, observamos que nossa língua é rica, dinâmica, viva e repleta de mistérios… E a medida que vamos desvendando os mistérios dela, descobrimos um universo fascinante e cheio de infinitas possibilidades para nos expressarmos e nos relacionarmos com as pessoas e com o mundo.

O que isso significa?

Significa que, ao penetrar os mistérios da língua, conhecemos o seu poder e deixamo-nos fascinar, pois entendemos que somos capazes de pensar e agir neste mundo por meio deste instrumento tão poderoso.

Assim, passamos a interagir diariamente na sociedade submersos às infinitas possibilidades de vivências com a língua: ao ler o editorial do jornal – de linguajar mais refinado; ao ler textos legais (como a Constituição Federal); ao conversar com o vizinho querido e amável, com seu gracioso sotaque carregado de marcas linguísticas específicas e ao conversar com pessoas estranhas com as quais não temos nenhuma relação de intimidade – estamos fazendo uso desta poderosa ferramenta: a língua.

Em seu poema Aula de português: “A linguagem na ponta da língua tão fácil de falar e de entender […] O português são dois; o outro, mistério”, Drummond menciona que o português “são dois”, visto que podemos usar a língua em diferentes situações. Assim sendo, o poeta expressa as marcas de variação de usos da linguagem em situações formais e informais.

De modo primoroso, no verso 11, vale-se do neologismo, termo criado por ele (e que eu adoro!): “esquipáticas”; aludindo ao fato de as gramáticas se apresentarem esquisitas + antipáticas (para muitos). Portanto, evidencia diferenças entre os níveis de formalidade presentes na língua falada e na língua escrita, comprovando a existência da língua do dia a dia e da língua utilizada em situações mais formais.

A respeito dessa discussão, reitero o poder e o mistério presentes neste instrumento de comunicação: a língua. Por meio dela, descobrimo-nos capazes de interagir com o mundo e ler um clássico, ouvir um funk, uma MPB, um rap, um jazz; ler histórias em quadrinhos, charges, anúncios publicitários, bulas de remédios, receitas culinárias, notícias de jornal, diferenciar notícias fake de fatos verídicos, e por aí vai.

Muitas pessoas, infelizmente, têm acesso negado a essa inserção proveniente de políticas educacionais e linguísticas ineficientes e dominam tão só a língua do dia a dia.

O ensino de língua nas escolas precisa considerar a relação que há entre língua, pensamento e realidade, focalizando todas as possíveis formas de realizações da língua, o que implica habilitar o aluno a usar de modo adequado as várias normas nos diversos contextos e situações de interação – o que, obviamente, compreende a norma culta (e as demais).

Para finalizar, convido-o à reflexão: você entendeu que quando lê, produz e pensa acaba por internalizar as estruturas dos diversos textos e é capaz de transitar desde o contexto mais informal ao mais formal de linguagem? É este o caminho: uma linguagem falada e escrita que lhe dê autonomia para interagir nas várias situações de sua vida, possibilitando-lhe desfrutar desse poderoso mistério em torno do universo linguístico.

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