No Dia de Finados, fui a dois cemitérios da minha cidade: em um bairro e no centro. Especialmente no do centro me peguei pensando e divagando. Não sobre os mortos ou a vida depois da vida, mas sobre o que está acontecendo agora. Nada muito filosófico ou transcendental. Apenas a constatação de que não havia quase ninguém nos cemitérios, quase nenhum movimento na rua do cemitério e nenhuma daquelas barracas de flores.
E não faz muitos anos que nesse dia era necessário evitar a rua do cemitério (do centro, especialmente), não por causa das almas penadas, mas porque o trânsito não fluía. Além de muita gente nas calçadas, várias bancas de flores disputando lugar com pedestres e veículos.
O que houve? Abdução coletiva?
Mudanças
Havia os cheiros das flores, vendedores de crisântemos, vasos de flores de plástico, velas e outros apetrechos para essa ocasião. Havia vida ao redor da morte. Agora um silêncio quase sepulcral, com o perdão do trocadilho.
O que mudou? Muita coisa, inclusive a forma de lembrar os que se foram. A transformação digital, que já havia invadido trabalho, lazer e amor, alcançou o território da memória. Hoje, o luto tem login e senha. As homenagens acontecem no Instagram, nos stories, nas postagens de quase todas as redes sociais. As flores são digitais, as lágrimas são curtidas, e a saudade se mede em engajamento.
Acredito (talvez ingenuamente) que não seja falta de amor. É outra linguagem. O gesto físico de ir até o túmulo exige tempo, movimento e introspecção, três recursos que o mundo digital desaprendeu a oferecer. O tempo da tela é instantâneo e público. A internet não tem paciência para o silêncio. E o luto, que precisa de silêncio para existir, acaba se tornando conteúdo.
Os algoritmos adoram, pois continuam remunerando seus patrões…
Os fantasmas se divertem
A música Pet Sematary, dos Ramones, tema de hoje, traduz um pouco e com ironia essa nova paisagem: “I don’t want to be buried in a Pet Sematary, I don’t want to live my life again”. No fundo, o medo não é da morte, é de reviver indefinidamente. E é justamente isso que as redes sociais fazem com nossos mortos: transformam a ausência em presença eterna. O aniversário de alguém que já partiu reaparece todos os anos, com a mesma foto e as mesmas reações automáticas. É como se o algoritmo insistisse em abrir o portão do cemitério digital para que os fantasmas nunca descansassem.
O mais curioso é que essa transição afetou também a economia da morte. As bancas de flores que sumiram das ruas não desapareceram por acaso; foram substituídas pelos presentes virtuais, pelas postagens compartilhadas, pelos vídeos de lembrança. É mais rápido, mais prático e, para muitos, menos doloroso. Mas é também mais raso.
A tecnologia não matou o luto; apenas o tornou instantâneo e higienizado. Em vez de processar a dor, filtra-a com o mesmo aplicativo que se usa para registrar o almoço ou o pôr do sol. É uma nova forma de anestesia: pública, performática, socialmente aceita.
No fundo, o que se perdeu foi o rito. A caminhada até o cemitério, o cheiro das flores, o toque da pedra fria do túmulo, o silêncio que ecoava mais do que qualquer discurso. O luto digital, por mais moderno que pareça, ainda não aprendeu a lidar com o som do vazio.
Algumas outras curiosidades
Para relembrar. Alguns anos atrás publiquei nas minhas redes sociais a história da mãe sul-coreana que viveu a emoção de reencontrar a filha de sete anos por meio de um aplicativo de realidade virtual. A filha morta. O vídeo é forte, intenso e faz pensar muito.
A outra publicação era mais leve: a instalação de QRCode nos túmulos para que os interessados pudessem ter acesso a informações sobre o falecido. No mínimo, curioso.