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Mataram São Tomé

Foto: Freepik

Por: Raphael Rocha Lopes

15/10/2025 - 07:10

“♫ But then they sent me away/ To teach me how to be sensible/ Logical/ Oh responsible, practical/ And they showed me a world/ Where I could be so dependable/ Oh, clinical/ Oh, intellectual, cynical” (The logical song; Supertramp)

São Tomé foi um dos doze apóstolos de Jesus Cristo. Reza a lenda que ele duvidou da ressurreição de Jesus até vê-lo e tocar suas chagas. Daí a expressão popular brasileira: “Sou que nem São Tomé; só acredito vendo.” É a típica manifestação de céticos (ou nem tanto) em relação a situações pouco comuns ou difíceis de acreditar.

Ocorre que essa expressão está para morrer definitivamente, e não pelo contínuo, crescente e assustador desconhecimento dos jovens sobre cultura geral. Agora, ver alguma coisa pode não significar mais nada; pode não provar nada; pode manter qualquer um na dúvida.

Deepfakes e IA

As deepfakes (manipulações de vídeos e áudios tão bem-feitas que parecem reais) já vinham assombrando as relações sociais há algum tempo. Ocorre que, com a popularização da inteligência artificial, essas manipulações se tornaram tão perfeitas que já não dá para acreditar nem no que se vê.

Hoje, é possível colocar qualquer pessoa, viva, morta ou nem nascida, dançando funk, discursando em russo fluente ou confessando crimes jamais cometidos. As ferramentas de IA generativa conseguem reproduzir expressões faciais, timbres de voz e até os pequenos gestos involuntários. Se São Tomé vivesse em 2025, duvido que tocaria as chagas de Cristo. Pediria para checar os metadados do vídeo e confirmar se não foi feito por uma IA daquelas que dizem “Gerado por Grok, versão 3.7”.

O problema é que as consequências dessa nova era do “ver não é crer” vão muito além das piadas e memes. É a era do colapso da confiança: já não se sabe se a mensagem de voz do chefe é mesmo dele, se o vídeo íntimo que circula nas redes é verdadeiro ou se o candidato defendendo absurdos realmente disse o que aparece no vídeo. A dúvida, que antes era uma virtude filosófica, virou um fardo social.

Dilemas inéditos

Empresas, governos e até tribunais estão às voltas com dilemas inéditos. Como comprovar a autenticidade de uma imagem? Como diferenciar um depoimento verdadeiro de uma criação de IA? No mundo corporativo, uma deepfake pode destruir reputações em segundos, derrubar ações em minutos e gerar processos milionários em horas. O setor jurídico, coitado, já precisa lidar com a era da “prova impossível”: está cada vez mais difícil diferenciar evidência de ficção digital.

O cidadão comum, por sua vez, vive uma paranoia moderna. Recebe um vídeo e pensa: “Será mesmo o presidente?” Ou: “Será mesmo minha mãe me pedindo dinheiro no Pix?” São tempos difíceis para quem ainda tem fé nos olhos.

E, claro, há também o lado cômico da tragédia. Já existem relatos de casais brigando por ciúmes de vídeos deepfake, o que deve causar certo desespero aos advogados de família e certo entusiasmo aos roteiristas de novela.

Mas o humor não disfarça o risco. O mundo está se tornando um teatro onde todos podem ser atores, sem jamais subir ao palco. É um universo onde o real e o artificial se misturam de tal forma que, se Platão revisitasse sua caverna hoje, provavelmente ligaria a lanterna do celular para ter certeza de que as sombras na parede não foram renderizadas por IA.

A tecnologia, claro, não é a vilã. O problema é o uso e, sobretudo, a falta de preparo da sociedade para lidar com essas novas realidades. A alfabetização digital e a educação para o pensamento crítico nunca foram tão urgentes. Ensinar a duvidar sem neurose, comparar fontes e questionar o que se vê será tão essencial quanto ensinar a ler e escrever.

O desafio não é apenas proteger a verdade, mas reconstruir a confiança. Num mundo em que qualquer um pode criar provas digitais, acreditar passa a ser um ato de coragem e duvidar, talvez, uma forma de sabedoria.

São Tomé morreu, sim. E morreu sem backup.

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Raphael Rocha Lopes

Advogado, autor, professor e palestrante focado na transformação digital da sociedade. Especializado em Direito Civil e atuante no Direito Digital e Empresarial, Raphael Rocha Lopes versa sobre as consequências da transformação digital no comportamento da sociedade e no direito digital. É professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Católica Santa Catarina e membro da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs.